Minha querida avó,
Muitas vezes falo contigo, geralmente quando as lágrimas lutam furiosamente por sair. Respondes-me com o calor humano ímpar que sinto dentro de mim e os braços em redor da alma. És a saída, és a resposta, és o conforto, és o empurrão que eu preciso... É um diálogo a sós que sempre quis traduzir em algo material, consigo pensar, consigo sentir, não consigo transcrever. Acelera o batimento cardíaco pois o calor é imenso e deixo os dedos serem o coração e o coração seguir a mente.
Carregaste nos ombros um peso que não era teu. Envergonhavas-te por te sentires a serpente do paraíso, quando no máximo foste a semente da maçã. Teu pai, herdeiro das melhores famílias, mulherengo de serviço, pioneiro na condução de carros no distrito no Porto, enfeitiçou-se por uma simples criada e da luxúria fez humildade por amor, tudo trocando. Foi renegado com o alento material de uma vida sem vicissitudes mas sem o requinte de até então. Já com doze anos foste a portadora das alianças que finalmente selaram um futuro e uma união já antes consumada. Pela vida toda sofreste por um apelido que não tinhas, foi-te negado à nascença e atribuído por direito na campa. Não precisavas és bem mais do que um nome, mas pelo nome te conheço por Micas a minha avó, a minha orientadora, a pessoa que me desenhou...
O cheiro e o carinho da minha mãe foi o teu; a primeira noite foi passada contigo. Apenas o prelúdio do papel que representarias na minha vida, tivesse antecipado e já mais largaria esses teus caracóis frondosos e esse sorriso esplêndido, pelo menos no tempo que me foste destinado.
Estiveste sempre lá. Cada momento, cada marco, cada passo estás lá tu. Tinhas um plano para mim, pegaste num esboço de pessoa e foste "tricotando" cada pedacinho de mim, com linhas que eram minhas, um plano que não era teu, mas da qual foste nomeada guardiã. Tu sabias, tu viste, não me mostraste, não disseste qual o caminho, mas preparaste-me. Tu viste o meu dom, tu sabias, sabias o que me iria custar, sabias os demónios contra o que teria de lutar... É difícil avó muito difícil, não o quero mas sei que não me cabe a mim resolver, por isso dá-me a tua mão e não a largarei.
Sempre acreditaste em mim. Soubeste estimular-me, soubeste repreender-me, não importa qual a escala. Quando me confidenciavas o orgulho que tinhas de mim, era tudo o que bastava. Hoje na cama quando não sobra um cabelo de fora dos lençóis ainda te questiono: "tens orgulho em mim?". Sinto-me em dívida para contigo pelo homem que sou, pelo que atingi, mas culpo-te pelo que fracassei. És forte por isso te transmito mais um peso que não é teu, mas és forte e eu não sei se o consigo transportar. Agarra a minha mão e não a largues.
Fez nove anos que partiste. Ao início pela mesquinhez insegura da condição humana, procurei-te incessantemente debaixo daquelas pedras de mármore frias. Sentava-me, fechava os olhos e gritava silenciosamente por ti. Nunca estavas em "casa". Com paciência, com carinho, com tranquilidade apertaste um pouco mais a minha mão e percebi que não tinha de te procurar porque tu sempre me encontravas.
Sei porque partiste. Foi o teu derradeiro acto de sacrifício. Não sei com quem ou o quê fizeste o pacto, mas resultou, o drama terminou, a tua família superou uma das fases mais negras. Saímos todos mais unidos e fortes. Repudio quem ou o quê firmou acordo mais hediondo, mas aliviado e grato me sinto pelo teu gesto. Pedi a mão e abraçaste-me...
Partiste e eu não me despedi. Estava contigo e tinhas aquele sorriso, prostrada de forma indefesa no leito no qual abraçarias a morte. Não me recordo o que disseste, acho mesmo que não falaste, mas disseste tudo e eu não me despedi... Longos tempos carreguei essa imagem, sem perceber o significado que não fosse uma ferramenta de fustigação. Uma última lição me deste nesse dia... Tu "disseste", eu soube e a única coisa que disse foi: "até já Miquinhas!" Disse-o, mas não abri a boca, disse-o com o meu dom, para te mostrar que o entendi. Não senti como suficiente. Obrigado pela lição, aprendi o valor do sentimento em palavras, aprendi o que é perder a oportunidade de demonstrar o que sentimos, ainda que não seja necessário ou não deva ser necessário. Eu amo-te, entrou no meu dicionário. Não passei amar mais, mas a demonstrar mais. Amo os meus irmãos, os meus pais, a minha/nossa família, amo o sorriso que me fazem esboçar, a lágrima que me fazem correr. Eu amo, gestos, olhares, sons, cheiros, texturas, amo e sei que amo. Quando largo a tua mão para abraçar alguém, coloca a mão que agora tens livre nos meus ombros...
Tens orgulho em mim? Até já Miquinhas...
Muitas vezes falo contigo, geralmente quando as lágrimas lutam furiosamente por sair. Respondes-me com o calor humano ímpar que sinto dentro de mim e os braços em redor da alma. És a saída, és a resposta, és o conforto, és o empurrão que eu preciso... É um diálogo a sós que sempre quis traduzir em algo material, consigo pensar, consigo sentir, não consigo transcrever. Acelera o batimento cardíaco pois o calor é imenso e deixo os dedos serem o coração e o coração seguir a mente.
Carregaste nos ombros um peso que não era teu. Envergonhavas-te por te sentires a serpente do paraíso, quando no máximo foste a semente da maçã. Teu pai, herdeiro das melhores famílias, mulherengo de serviço, pioneiro na condução de carros no distrito no Porto, enfeitiçou-se por uma simples criada e da luxúria fez humildade por amor, tudo trocando. Foi renegado com o alento material de uma vida sem vicissitudes mas sem o requinte de até então. Já com doze anos foste a portadora das alianças que finalmente selaram um futuro e uma união já antes consumada. Pela vida toda sofreste por um apelido que não tinhas, foi-te negado à nascença e atribuído por direito na campa. Não precisavas és bem mais do que um nome, mas pelo nome te conheço por Micas a minha avó, a minha orientadora, a pessoa que me desenhou...
O cheiro e o carinho da minha mãe foi o teu; a primeira noite foi passada contigo. Apenas o prelúdio do papel que representarias na minha vida, tivesse antecipado e já mais largaria esses teus caracóis frondosos e esse sorriso esplêndido, pelo menos no tempo que me foste destinado.
Estiveste sempre lá. Cada momento, cada marco, cada passo estás lá tu. Tinhas um plano para mim, pegaste num esboço de pessoa e foste "tricotando" cada pedacinho de mim, com linhas que eram minhas, um plano que não era teu, mas da qual foste nomeada guardiã. Tu sabias, tu viste, não me mostraste, não disseste qual o caminho, mas preparaste-me. Tu viste o meu dom, tu sabias, sabias o que me iria custar, sabias os demónios contra o que teria de lutar... É difícil avó muito difícil, não o quero mas sei que não me cabe a mim resolver, por isso dá-me a tua mão e não a largarei.
Sempre acreditaste em mim. Soubeste estimular-me, soubeste repreender-me, não importa qual a escala. Quando me confidenciavas o orgulho que tinhas de mim, era tudo o que bastava. Hoje na cama quando não sobra um cabelo de fora dos lençóis ainda te questiono: "tens orgulho em mim?". Sinto-me em dívida para contigo pelo homem que sou, pelo que atingi, mas culpo-te pelo que fracassei. És forte por isso te transmito mais um peso que não é teu, mas és forte e eu não sei se o consigo transportar. Agarra a minha mão e não a largues.
Fez nove anos que partiste. Ao início pela mesquinhez insegura da condição humana, procurei-te incessantemente debaixo daquelas pedras de mármore frias. Sentava-me, fechava os olhos e gritava silenciosamente por ti. Nunca estavas em "casa". Com paciência, com carinho, com tranquilidade apertaste um pouco mais a minha mão e percebi que não tinha de te procurar porque tu sempre me encontravas.
Sei porque partiste. Foi o teu derradeiro acto de sacrifício. Não sei com quem ou o quê fizeste o pacto, mas resultou, o drama terminou, a tua família superou uma das fases mais negras. Saímos todos mais unidos e fortes. Repudio quem ou o quê firmou acordo mais hediondo, mas aliviado e grato me sinto pelo teu gesto. Pedi a mão e abraçaste-me...
Partiste e eu não me despedi. Estava contigo e tinhas aquele sorriso, prostrada de forma indefesa no leito no qual abraçarias a morte. Não me recordo o que disseste, acho mesmo que não falaste, mas disseste tudo e eu não me despedi... Longos tempos carreguei essa imagem, sem perceber o significado que não fosse uma ferramenta de fustigação. Uma última lição me deste nesse dia... Tu "disseste", eu soube e a única coisa que disse foi: "até já Miquinhas!" Disse-o, mas não abri a boca, disse-o com o meu dom, para te mostrar que o entendi. Não senti como suficiente. Obrigado pela lição, aprendi o valor do sentimento em palavras, aprendi o que é perder a oportunidade de demonstrar o que sentimos, ainda que não seja necessário ou não deva ser necessário. Eu amo-te, entrou no meu dicionário. Não passei amar mais, mas a demonstrar mais. Amo os meus irmãos, os meus pais, a minha/nossa família, amo o sorriso que me fazem esboçar, a lágrima que me fazem correr. Eu amo, gestos, olhares, sons, cheiros, texturas, amo e sei que amo. Quando largo a tua mão para abraçar alguém, coloca a mão que agora tens livre nos meus ombros...
Tens orgulho em mim? Até já Miquinhas...
"Não senti como suficiente. Obrigado pela lição, aprendi o valor do sentimento em palavras, aprendi o que é perder a oportunidade de demonstrar o que sentimos, ainda que não seja necessário ou não deva ser necessário. Eu amo-te, entrou no meu dicionário. Não passei amar mais, mas a demonstrar mais."
ResponderEliminarHoje comento com as tuas palavras... porque dizes tudo! Com receio de quebrar esta magia dou-me ao silencio!