Início do mês, altura de um exercício preventivo face à volatibilidade da memória, verifico os aniversários que se avizinham para reduzir o risco de me esquecer de algum. O Hi5 ajuda, mas felizmente que ainda existem algumas criaturas que estoicamente resistem, logo não é garantia coisa nenhuma.
Neste caso não necessitava que me recordassem da data, mas das recordações da data vividas todos os anos nesse dia. Dia 1 de Maio, aniversário da Vóvó Ilbete Mortoni, uma das figuras mais belas e coerentes que tive e tenho o orgulho de conhecer. Sem trair os pensamentos debruço-me um pouco sobre os acontecimentos e depois o que faltar será preenchido com uma tentativa de desenhar a figura.
Moro a um km da D.ª Ilbete, contudo visito-a 3 a 4 vezes por ano. Culpo-me por não o fazer mais, mas tudo me é desculpabilizado por ela... Contudo dia do trabalhador é sagrado de uns anos a esta parte e a cerimónia sempre a mesma. Pensar, escrever sobre a mesma causa um misto de perplexidade sem a surpresa que me aguarda, admiração e receio... Falarei no presente e não no passado.
Já chego tarde são 16h. Encontro um grupo de senhoras idosas em redor de uma mesa. Como seria de esperar da idade, as mantas cobrem as pernas, nenhuma frase é entendida sem o: fala mais alto mulher que não te ouço. Chegar tarde trás a vantagem de não ter de ouvir falar das doenças intermináveis e na medição de forças quem tem mais doenças e a doença mais rara prémio último a quem tem mais de oitenta anos.
Na mesa está o chã, o pão-de-lo, as bolachinhas, a goiabada que a Ilbete adora e mais alguns mimos. Tudo muito normal, até que ela sempre ela, a D.ª Alice dispara: Oh Ilbete onde tens guardada aquela garrafa de vinho do Porto. Bem é agora que eu tremo, acho que não me vou sentir tão nervoso quando a idade me obrigar a toques rectais frequentes... Transpiro, olha para todas e para cada um delas e antevejo a metamorfose que em breve se sucederá.
A Vóvó: Joel sê um neto amigo e vai buscar a garrafa que eu escondi... Ao que eu interrompo: eu sei onde está! Qual resignação do enforcado perante a sentença. Não há cálices não faz mal, vai na chávena de chã. Uma simples garrafa, 6 a 7 mulheres, o terror de um jovem. Voam as mantas, sai o frio vem o calor. A Ilbete puxa do seu esplendor que me seduz, me faz olhar para ela como uma diva e declama poemas de memória, com uma sensação de pertença dos sentimentos do poeta que só quem viveu pode afirmar. Todas aplaudem, todas mostram os seus talentos, delicio-me extasiado com tamanha demonstração de vida, a quem já não consegue voltar costas à morte por muito tempo...
Até que... Ela, sempre ela, a Alicinha sobe a parada e eu entro em taquicardia porque já sei onde isto termina e este ano tinha esperanças que fosse diferente. "O meu homem era muito meu amigo, comia as outras para me poupar a mim". Onde outrora havia actrizes, poetizas, mulheres de culto, há agora peixeiras, "jovens" com uma apetência sexual indecorosa... Ouço coisas que nenhum ser humano com pais e avós deveria ouvir. Imagens de pessoas daquela idade em burlescos momentos de êxtase sexual, não é propriamente a melhor sensação. Fico com impressão que falha a audição, a visão, praticamente tudo e elas aceitam mas o sexo...
Chegou o momento... condenado não tem direito a últimas palavras, apenas última refeição se desejar... Já não sei se é ela ou se é outra, mas de um momento para o outro os olhares multiplicam-se na minha direcção, sou tomado por uma sensação de desconforto, depois de pânico e sinto-me encurralado, como uma gazela libertada no meio de um grupo de leoas famintas. Não mexo um músculo e penso que tenho tempo de correr até à porta, afinal de contas todas elas não andam sem muletas, mas algo me diz q não chego lá. Despeço-me deste mundo e doutros que ainda estão para vir e resigno-me a tal destino, quem sabe nem seja tão mau... Ouço a voz de um anjo: "Meninas, juízo deixem o meu neto..." Sigo a deixo e digo: "bem é um prazer mas já se faz tarde e sabem como é, ainda tenho muitas memórias a construir para ter algo a contar daqui a 50 anos!" Beijinho carinhoso em cada uma delas e um enorme beijo com um abraço incrivelmente forte na Vóvó e saio.
Antes de sair olho uma última vez para trás, com surpresa vejo mais garrafas. Como lá chegaram não sei, o que se passa a seguir, nem me atrevo a pensar. A menos que elas encomendem pizzas e o rapaz vá fazer entrega...
Já cá fora, respiro o ar puro e penso para o ano venho uns dias antes e escondo a garrafa. Não não farei isso, este é um dos dias mais importante do ano para mim e não sei viver sem ele, além do mais elas arranjam sempre alternativas. Estranhos são os desígnios do Senhor, ou neste caso, das senhoras de 80 anos.
Não sobra muito espaço e espaço nenhum sobra para descrever um fio de cabelo desta mulher. Melhor assim, porque odeio a ideia de começar um projecto que não concluo. Senhora, Dona, Menina Ilbete Mortoni, a minha Vóvó, nascida em São Paulo Brasil, neta de italiano e alemã, pai português, uma irmã, vem para Portugal sozinha aos 12 anos. Conheço um "senhor" Aníbal Leite Braga farmacêutico e inveterado mulherengo e amante da vida de quem tem 8 filhos. Perde um filho, Germinal, em 1976 com vinte e pouco anos à altura e abraça um luto que ainda hoje ostenta não só nas vestes como na alma... Faço um parênteses, uso uma prolepse porque uma vida não são palavras e linhas não são anos.
Ilbete é uma mulher incrível, de uma inteligência extraordinária. Precisa na escrita, apaixonada pela leitura, não se envergonha a discutir qualquer assunto seja qual for o interlocutor. Matriarca absoluta no controlo e protecção da sua prole. Solitária, cinzenta, pessimista, prefere a chuva ao sol. Olhos claros, extremamente débil na sua magreza, cabelos cor da neve não profanada. Apela constantemente à morte e não se apercebe do brinde que a vida lhe traz; sonha com o momento que abraçará o filho que viu partir, e não sente plenamente os dos que cá estão.
"Bebi tanto desta mulher, desta criatura que para mim assume contornos divinos, tanto na minha herança genética como na moldagem que o meio teve em mim e na minha personalidade.
"Se o teu desejo for esse,
Coloca a tua mão na minha cara.
Só pararei de pressionar a almofada que tenho sobre a tua cabeça
Se me fizeres sinal com a mão,
Caso contrário acarinha-me
Pois será essa a mais bela recordação
Neste caso não necessitava que me recordassem da data, mas das recordações da data vividas todos os anos nesse dia. Dia 1 de Maio, aniversário da Vóvó Ilbete Mortoni, uma das figuras mais belas e coerentes que tive e tenho o orgulho de conhecer. Sem trair os pensamentos debruço-me um pouco sobre os acontecimentos e depois o que faltar será preenchido com uma tentativa de desenhar a figura.
Moro a um km da D.ª Ilbete, contudo visito-a 3 a 4 vezes por ano. Culpo-me por não o fazer mais, mas tudo me é desculpabilizado por ela... Contudo dia do trabalhador é sagrado de uns anos a esta parte e a cerimónia sempre a mesma. Pensar, escrever sobre a mesma causa um misto de perplexidade sem a surpresa que me aguarda, admiração e receio... Falarei no presente e não no passado.
Já chego tarde são 16h. Encontro um grupo de senhoras idosas em redor de uma mesa. Como seria de esperar da idade, as mantas cobrem as pernas, nenhuma frase é entendida sem o: fala mais alto mulher que não te ouço. Chegar tarde trás a vantagem de não ter de ouvir falar das doenças intermináveis e na medição de forças quem tem mais doenças e a doença mais rara prémio último a quem tem mais de oitenta anos.
Na mesa está o chã, o pão-de-lo, as bolachinhas, a goiabada que a Ilbete adora e mais alguns mimos. Tudo muito normal, até que ela sempre ela, a D.ª Alice dispara: Oh Ilbete onde tens guardada aquela garrafa de vinho do Porto. Bem é agora que eu tremo, acho que não me vou sentir tão nervoso quando a idade me obrigar a toques rectais frequentes... Transpiro, olha para todas e para cada um delas e antevejo a metamorfose que em breve se sucederá.
A Vóvó: Joel sê um neto amigo e vai buscar a garrafa que eu escondi... Ao que eu interrompo: eu sei onde está! Qual resignação do enforcado perante a sentença. Não há cálices não faz mal, vai na chávena de chã. Uma simples garrafa, 6 a 7 mulheres, o terror de um jovem. Voam as mantas, sai o frio vem o calor. A Ilbete puxa do seu esplendor que me seduz, me faz olhar para ela como uma diva e declama poemas de memória, com uma sensação de pertença dos sentimentos do poeta que só quem viveu pode afirmar. Todas aplaudem, todas mostram os seus talentos, delicio-me extasiado com tamanha demonstração de vida, a quem já não consegue voltar costas à morte por muito tempo...
Até que... Ela, sempre ela, a Alicinha sobe a parada e eu entro em taquicardia porque já sei onde isto termina e este ano tinha esperanças que fosse diferente. "O meu homem era muito meu amigo, comia as outras para me poupar a mim". Onde outrora havia actrizes, poetizas, mulheres de culto, há agora peixeiras, "jovens" com uma apetência sexual indecorosa... Ouço coisas que nenhum ser humano com pais e avós deveria ouvir. Imagens de pessoas daquela idade em burlescos momentos de êxtase sexual, não é propriamente a melhor sensação. Fico com impressão que falha a audição, a visão, praticamente tudo e elas aceitam mas o sexo...
Chegou o momento... condenado não tem direito a últimas palavras, apenas última refeição se desejar... Já não sei se é ela ou se é outra, mas de um momento para o outro os olhares multiplicam-se na minha direcção, sou tomado por uma sensação de desconforto, depois de pânico e sinto-me encurralado, como uma gazela libertada no meio de um grupo de leoas famintas. Não mexo um músculo e penso que tenho tempo de correr até à porta, afinal de contas todas elas não andam sem muletas, mas algo me diz q não chego lá. Despeço-me deste mundo e doutros que ainda estão para vir e resigno-me a tal destino, quem sabe nem seja tão mau... Ouço a voz de um anjo: "Meninas, juízo deixem o meu neto..." Sigo a deixo e digo: "bem é um prazer mas já se faz tarde e sabem como é, ainda tenho muitas memórias a construir para ter algo a contar daqui a 50 anos!" Beijinho carinhoso em cada uma delas e um enorme beijo com um abraço incrivelmente forte na Vóvó e saio.
Antes de sair olho uma última vez para trás, com surpresa vejo mais garrafas. Como lá chegaram não sei, o que se passa a seguir, nem me atrevo a pensar. A menos que elas encomendem pizzas e o rapaz vá fazer entrega...
Já cá fora, respiro o ar puro e penso para o ano venho uns dias antes e escondo a garrafa. Não não farei isso, este é um dos dias mais importante do ano para mim e não sei viver sem ele, além do mais elas arranjam sempre alternativas. Estranhos são os desígnios do Senhor, ou neste caso, das senhoras de 80 anos.
Não sobra muito espaço e espaço nenhum sobra para descrever um fio de cabelo desta mulher. Melhor assim, porque odeio a ideia de começar um projecto que não concluo. Senhora, Dona, Menina Ilbete Mortoni, a minha Vóvó, nascida em São Paulo Brasil, neta de italiano e alemã, pai português, uma irmã, vem para Portugal sozinha aos 12 anos. Conheço um "senhor" Aníbal Leite Braga farmacêutico e inveterado mulherengo e amante da vida de quem tem 8 filhos. Perde um filho, Germinal, em 1976 com vinte e pouco anos à altura e abraça um luto que ainda hoje ostenta não só nas vestes como na alma... Faço um parênteses, uso uma prolepse porque uma vida não são palavras e linhas não são anos.
Ilbete é uma mulher incrível, de uma inteligência extraordinária. Precisa na escrita, apaixonada pela leitura, não se envergonha a discutir qualquer assunto seja qual for o interlocutor. Matriarca absoluta no controlo e protecção da sua prole. Solitária, cinzenta, pessimista, prefere a chuva ao sol. Olhos claros, extremamente débil na sua magreza, cabelos cor da neve não profanada. Apela constantemente à morte e não se apercebe do brinde que a vida lhe traz; sonha com o momento que abraçará o filho que viu partir, e não sente plenamente os dos que cá estão.
"Bebi tanto desta mulher, desta criatura que para mim assume contornos divinos, tanto na minha herança genética como na moldagem que o meio teve em mim e na minha personalidade.
"Se o teu desejo for esse,
Coloca a tua mão na minha cara.
Só pararei de pressionar a almofada que tenho sobre a tua cabeça
Se me fizeres sinal com a mão,
Caso contrário acarinha-me
Pois será essa a mais bela recordação
Que guardaremos um do outro.
Se for esse o teu desejo..."
AMO-TE muito Vóvó...
Se for esse o teu desejo..."
AMO-TE muito Vóvó...
O melhor de ler é sem duvida o caminho para onde as palavras nos levam… voei para dentro de uma casa que não conheço á medida que li o teu relato das tardes do dia 1 de Maio! A idade também nos torna pessoas padrão, tal e qual outra fase da vida… acredito que todas as senhoras com netos na casa dos 30 ostentem um desejo interminável pelas discussões de medicamentos e doenças, façam trocadinhos sobre a sua vida amorosa e declamem poemas de memoria! São feitas de outra matéria, que não a nossa, são o reflexo de outro tempo que só podemos imaginar…são mais reais do alguma vez seremos…
ResponderEliminarFalar de amor por palavras é isso mesmo que fizeste, é nos dar, a nós que lemos, a possibilidade de sorrir, de rir e de acarinhar essa pessoa… e de entendermos pelos teus olhos o quão especial ela é, é criáramos uma imagem e nos lembrarmos dela e, é sem duvida, poder sentir esta paz que me deste por ver que ainda há laços nas famílias, que há quem repare que a vida não se esgotou só porque se viveram mais anos!!
Obrigada por me dares a oportunidade de “conhecer” a avó Ilbete.
Um beijo para ela