Meu amigo Joel,
Na melancolia de um destino que se precipita, na angústia de um legado hipotecado, na opressão latejante a que te sujeitei, deixo uma mensagem em que a ilusão da cura é arremessada para o poço dos fracassos, surgindo somente a figura do modesto paliativo. Por favor aceita-o.
Ousei-te chamar meu amigo, quando caro, ou simples Joel, se deveriam impor por cautela que um desconhecido deveria assumir ao acercar-se de quem se esforça por o afastar. Se o fiz foi por desejar que purgadas as angústias, esclarecidas algumas dúvidas, apaziguado o desconforto, sejas capaz de guardar estas palavras e dizeres: meu eu que fui, não sou nada sem ti e com os teus medos ganhei forças, com as tuas certezas conquistei mundos, com as tuas inseguranças evitei sofrimentos e carrego dentro de mim o vórtice supremo da indivisível essência do que fui e do que tu és em tempos passados.
Entende que o que somos nunca é verdadeiramente nosso, já foi de outro e será de mais alguém. O bebé que foste não te pertence, se muito pertence aos teus pais pois eles acudiram a cada choro, satisfizeram cada necessidade, estiveram sempre presentes para uma criaturinha que não te recordas e que a única coisa que partilhas seja talvez o nome e vagas recordações.
Cingirei o espaço temporal na década. Dobrada que está a meta dos "inta", percorro um percurso mental que me transporta aos vinte anos, dez anos anos não são nada e ao mesmo tempo cavam um enorme fosso entre o que sonhamos e o local onde nos encontramos. Limites temporais transformados em barreiras físicas. Sorriso irónico perante a imagem recordada do que era. Porque desististe de lutar, porque não seguiste aquele caminho, onde estaria se tu tivesses feito o que sabias ser o correcto?! Porquê?! Diz-me, responde-me... A resposta não surge e não permitirei que tal suceda de novo. Por isso aqui tens esta mensagem, para que não me julgues com mais severidade com que o teu eu futuro, te julgará dez anos decorridos de onde te encontras e que esta voz do passado não se desvaneça com a volatibilidade do tempo, mantendo-se presente tal qual um farol quando necessário.
Sei exactamente o que quero dizer, mas desta vez só isso não me basta, preciso mesmo de ser ouvido. Uma distância muito curta da boca ao ouvido, não fosse o capricho do tempo que nos afasta e nos aproxima simultaneamente. Cada palavra que credito neste texto é um débito arrancado da profundeza de nós, num balanço que oscila entre implo ou explosão.
O nosso corpo, quantas vezes o levei à exaustão, quantas vezes não fiz dele o cavalo ofegante que suplica por descanso e eu levei vezes sem conta ao limite. Sentindo a mente "apodrecer", castiguei sem fim o corpo para que corpo e mente se abraçassem num destino de igual súplica. Horas retiradas ao sono, álcool como veículo de fuga a realidade, dores auto flageladas... Trato-o muitas vezes como um carro de aluguer, tenho consciência disso mas garanto-te que quando o te entregar terás pneus, gasolina, direcção e óleo para mais dez anos de condução, daí em diante a responsabilidade é tua...
Os sonhos adiados, o maior fantasma que me acompanha e que te entregarei muitas vezes maior, pois é criatura oportunista que se alimenta do sentimento do fracasso e da intriga da derrota. Idealizei um sonho para ti que é o melhor para mim, aceita-o ou sê corajoso para o mudar. Gostava que o aceitasses, vou lutar muito por ele, superar muitas barreiras, encetar uma longa viagem até te trazer até ti uma pequena parte do mundo contida no espaço necessário para sonharmos juntos.
Os filhos que não sacrifico como se mostrou disponível a sacrificar Abraão a Deus quando lhe foi ordenado. Sacrifício é mesmo o saco que escolho para juntar os sentimentos amargos que me inundam a pele, o cabelo, todo o corpo, ao imaginar-te ficares com os meus filhos. Desculpa mas não posso chamar nossos filhos, serão meus quando deveriam já ser, faz por os mereceres e eu esforçar-me-ei por aceitar que os tomes por teus.
Os livros que não li, os que não escrevi; as mulheres que não amei, as mulheres por quem não sofri, as que não permiti que me amassem; os concertos a que não fui, os desejos que não materializei; os pores-de-sol que não vi, o nascer do sol que não aceitei como uma nova oportunidade desperdiçava vezes sem sentido, os abraços que não dei, os sorrisos que não distribui; Resumindo, o que não fui tendo sido o que não deveria ter sido e o que me deveria ter tornado no que deveria ser.
Mas afinal o que fui e o que deveria ter sido, será que me sabes responder? Saberás, certamente saberás, eu é que não poderei ouvir. Não te martirizes no entanto, essa sensação inquietante de algo que vives, sentido que já viveste serei eu a tocar-te no ombro e mostrando-te o caminho. Tudo o que precisas é fechar os olhos e seguir a direcção que te indico, serei o teu deja vu.
Trato-te por amigo e rompo um dos lacres que coloco em volta das amizades que mais prezo. Peço-te desculpa Joel, este pedido de desculpa é como um martelo imponente e impiedoso que lanço sobre esse frágil lacre, sem contudo destruir a amizade amordaçada, nesse preconceito ditado por mim. Desculpa-me e aceita todas as más opções, aquelas inconscientes e acima de tudo as que sabia erradas...
Não quebrarei mais lacres se te pedir uma coisa. Não quebro porque não tenciono pedir-te mais do que podes dar. Joel não te pressiones e não permitas que te pressionem; segue o instinto, não te falte a coragem de seguires os teus próprios sonhos, não obstante este que te entrego num belo embrulho; não fujas da tua verdadeira natureza, preserva-a e acredita quando te digo que não é possível a partilhares; guarda a tua energia para as batalhas que valham mesmo a pena, mas nunca voltes as costas a nenhuma guerra; não aceites que há kriptonites, vê as fraquezas como oportunidades e não como ameaças; guarda sempre no teu coração um lugar para os que te amam, idolatra-os e não deixes de recordar o que significam para ti; ajuda quem precisa, foi-te dada uma arma que pesa imenso (sei porque a transporto não te esqueças), com essa arma podes terminar guerras em muitas pessoas, usa-a; nunca te sintas sozinho, tens-me a mim...
Lidas estas linhas poderás sentir que tento traçar-te o futuro, que te entrego um livro de instruções, que já fiz as escolhas por ti, quando de facto assim não o é. O que faço é o que qualquer pai faria pelo sei filho, começo por pedir desculpa por tentar e forçar-te a ser o que eu não consegui ser e depois tento auxiliar-te no melhor que posso e sei. Sim vejo-te como um filho e como pai estou convicto que não me decepcionarás.
Bonitas as palavras que escolhi para me despedir de ti, no entanto não tão nobre e simbólicas como o beijo que minha alma anseia por te dar. Escolho portanto as palavras daquele que a frase transporto impregnada no meu espírito e visível no meu pulso, certo que encontrarás o significado que escondo nelas:
"Quero vivê-lo, quando mais tarde me procure
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é a chama
Mas que seja infinito enquanto dure."
Associa as palavras que te deixo à imagem que com elas sepulto, qual cruz de jazigo em que descansam em paz pavores e receios.
Do sempre teu amigo,
O Joel que foste e que eu sou...
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