Esclareça-se, não o faço porque me tenhas pedido, ou porque preciso de recordar, não o faço pela dimensão imensurável do teu feito, ou para esclarecer alguma questão. Porque o faço não sei, mas sei porque o faço agora...
Selaste a entrada neste mundo com tragédia. Aquela que te carregou no seu ventre permitindo que te alimentasses da sua seiva, foi sepultada ainda antes de ter padecido. Como que se as suas últimas lufadas de ar tivessem sido roubadas, por aquele pequeno ser que eras e esperneava ensanguentado e cheio de vontade de abraçar a voz que aprendera a conhecer do interior. O destino te roubou o cheiro e o carinho de mãe e apenas agora te começava a pregar partidas.
Amaldiçoado, diriam alguns; sobrevivente era o vaticínio de outros. Pudessem aguardar pelo último acto, para que a cortina encerrasse o palco e a dúvida tomaria proporções ainda mais dantescas.
Órfão de mãe, um entre muitos irmãos és deixado ao cuidado de avós e tia solteira. Cresces um pouco como uma flor que se precipita sobre um riacho, deambulando no seu leito sem que as abelhas têm colhido todo o seu pólen. Mas cresces e mesmo da água, nesse movimento errático que não permite adivinhar o próximo percurso que irás tomar, é inesgotável o teu instinto de sobrevivência.
Juntos construímos foguetões; cantamos a lenga-lenga que era suposto convencer aquele afortunado insecto musical a abandonar a sua toca sombria, para uma existência numa gaiola com alface fresca todos os dias; fomos o terror dos pássaros que mais não pretendiam que seguir o rumo que a natureza lhes traçara e criar a sua prole... Juntos construímos sonhos e juntos sonhamos ainda mais alto.
Nem a vida regada te poupou ao martírio. Todo o desporto, a opção de dizer não aos cigarros, a abstinência alcoólica, o trabalho dedicado, o rigor eucarístico, de nada valeram. A notícia cai como uma bomba. Perdidos à tua volta procurávamos decifrar todos os contornos. Não pode ser penso eu, enquanto me mostras a casa que irás habitar com essa mulher sem ímpar, que idolatro pela sapiência da bondade, da simplicidade, da entrega plena. Não acredito penso novamente, não podes estar a ser devorado por dentro, tu casas daqui a 4 meses, não vais morrer neste mês ainda, não pode qual galopante qual quê. Na minha boca um sorriso perdido nas agruras de um desejo de vingança, que se agoniza quando mostras um quarto que será de costura mas muito em breve dos frutos do vosso amor...
Vi-te vomitar sangue, vi-te vomitar a tua própria carne. Muito chorei, assim como as lágrimas me partem agora dos olhos para se despedaçarem no teclado que escolho premir, para me trazer um pouco de paz. Perdeste quilo sobre quilo. Luta titãnica para fazer retroceder a comida em direcção ao estômago quando o organismo insinuava que o caminho natural já não era esse. Aceitavas e não questionavas, sabias que ias vencer nem que tivesses de roubar mais lufadas de ar à tua mãe que agora tomava o lugar vigilante à tua cabeceira, para te poder mostrar o rosto da voz q ouvias, pela primeira vez.
O teu amor, essa mártir, essa santa, adjectivos humildes face à distância da dor que percorreu para te mostrar que o vosso amor era eterno, não vacilou um segundo, não correu uma lágrima naquele rosto sem que num quadro maior se visse um sorriso. Por uma vez, uma única vez te vi extenuado de tão atroz sofrimento, olhar para cima e simplesmente questionar o porquê, o porquê de te estar acontecer isso. Desta vez sem coroa de espinhos mas o sentimento genuíno era o mesmo: "Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice."
Todos saiam, todos se desfaziam ao assistir, invariavelmente restavam na sala eu e vocês os dois essas criaturas magníficas. Não digo que não saía por coragem, mas sim porque me sentia magnetizado perante o que via à minha frente, perante a inesgotável fonte de amor, vontade de viver. Sentia-me tão pequenino, mas ao mesmo tempo tão quente e tão pacífico junto dos dois.
Um mês tornou-se em dois e em três e assim sucessivamente. Chegamos acreditar, usamos de tudo. Procurei respostas milagrosas na internet, buscamos o que o mundo da ciência tinha para oferecer, não se esgotaram mesinhas de freiras e menos freiras... Só vocês, posso dizer mesmo só tu, porque já não vos distinguia como duas pessoas mas uma só, perceberam e beijaram no rosto a morte que vos veio buscar e nem um segundo mais pediste.
Ensinaste-me tanta coisa Tino, mas tanta coisa que hoje tenho de esquecer para desculpar as asneiras que faço, quando cada ano que vivo depois de ti, aproveitarias bem melhor num simples minuto da tua vida. Aprendi também as coisas mais simples, aprendi a força de um sorriso e onde encontrar a energia para o trazer ao rosto das pessoas. Orgulhoso estarás por veres que não mais parei e por cada pessoa que faço sorrir num momento menos bom, é um tributo que eu te deixo. Pouco é, mas é o que sei dar.
Morreste e só me lembro do abraço que a tua meia metade que ficou para trás,me deu para me consolar. Lembro-me do beijo que te deu numa testa que não era tua e já estava gelada. Uma lágrima correu e não a impedi, o mais puro de mim estava lá e quem sabe o que não poderia fazer quando tocasse os teus olhos. Nada aconteceu... Olhava-te e via ossos de um herói, num lugar que deveria estar carne que nunca se deu por vencida mas por sacrificada. Transportei orgulhosamente o teu caixão, não como irmão de sangue mas como irmão de vida. De cabeça levantada ajudei a baixar-te e a tapar o teu resquício neste mundo e afastei-me no sentido de uma pedra que não era tua, mas de quem tinha a mão sobre o meu ombro. Chegado lá, chorei do mais profundo da minha alma e só de lá saí quando a Miquinhas me colocou a segunda mão sobre o ombro...
Também agora sinto uma mão no ombro que me dizes ser a tua, ou porque aceleraria assim o meu coração, porque arrepiaria a minha pele, porque se toldaria a minha vista? Tanto para ser dito e necessidade alguma de o dizer. Estou-te eternamente grato, és uma das pedras vacilares que me moldaram como sou e ainda assim sinto-me uma sombra do que tu eras.
"Chegaste, VIVESTE e partiste" de uma maneira única. Obrigado pelas lágrimas que tal como agora me caíram e limparam a alma, obrigado pela descoberta da força do sorriso e obrigado por me teres permitido partilhar um fragmento do teu exemplo de bravura e beleza de heroísmo simples. Obrigado Tino, quando nos reencontrarmos no mesmo patamar de materialidade sei o que te dizer...
Esta é a segunda vez que te leio e numa ansia confirmo cada palavra que ontem vi e que me ficaram cravadas na mente. Afinal não foram um sonho sonhado,afinal foram uma vida vivida e os meus olhos não se enganaram e testemunham cada palavra desta história sem adjectivação. Entre o choro que não consigo evitar só me invadem dois flashs "why" and "How". Porquê que estas coisas acontecem? Como é que estas coisas acontecem? Porquê passar por tantas quedas, tantas desilusões, tantas partidas? Como é possível passar por tantos sonhos perdidos e tantos desejos esquecidos?
ResponderEliminarO único consolo que guardo é que sou um dos tributos, porque a mim fizeram-me nascer um sorriso no meu rosto num momento menos bom da minha vida.
Toda a força e energia que daqui emanam aceleram a batida do meu coração e refrescam-me a mente lembrando-me que amanhã é um novo dia ... e a esperança nunca morre!
Ao ler as tuas palavras, revejo-me totalmente nelas...também carrego a angústia, o incrédulo, a saudade, a revolta, a incompreensão, a mágoa, a impotência...mas por outro "carrego" a memória da nossa infância....Hugo, partiste há um ano, mas não existe um único dia em que não me recorde de ti!!! Nunca te esquecerei!!!
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