Acto I
Alterno entre sms pessoais e telefonemas de trabalho, acrescendo factor de risco a um aumento alucinante de adrenalina na fronteira da conciliação destes dois mundos. Entre os pensamentos que não vou conseguir estar no local marcado à hora combinada, lá termino o trabalho e fecho os últimos assuntos mentalmente enquanto conduzo em direcção a casa. Chego 5 minutos antes, o tempo suficiente para lavar os dentes e já me lanço em direcção ao shoping mais próximo com sala de cinema, mas agora acompanhado.
Entre algumas garfadas de comida chinesa lá se trocaram algumas palavras. O filme, sim o filme, muito bom, reflectivo, cinzento, humor perspicaz e ironias contidas num espaço onde só cabe o mundo real. Teve o mérito de me mudar a empatia com o sorriso e me lançar numa torrente de considerações interiores. Concordo com o título de principal candidato ao Óscar. A banda sonora há muito pauta momentos meus, agora decifrei que reduzo diariamente a minha backpackage.
Lugar no estacionamento para o cinema, mesa perto do restaurante e claro lugar de estacionamento mesmo em frente às Galerias. Casa do Livro, o nome leva-me sempre lá. Entre músicas e duas cervejas tivemos oportunidade de trocar mais algumas palavras, lançando uma confusão que baralhou. Seguimos caminho para casa, numa rota alternativa. A Refinaria parece tão bela, o mar está sereno e a lua cheia. Não falamos, apenas olhamos nos olhos um do outro como sempre deveria ser.
Acto II
Acordar penoso devido às poucas horas de sono. Dois segundos e um salto da cama, é Sábado, é para o mar que eu vou e não fazer por merecer o salário. Liga o Engenheiro e cá vamos nós em direcção Aguça. Ondas medianas, chegamos no final mas a teimosia lança-nos à água quando todos seguem o sentido oposto. Pelo menos repos-se o nível de salinidade no corpo e o equilíbrio na mente. Passo num restaurante trago consolo para o estômago e chego a casa. Uma tarde doing nothing, para além de farmeville e algumas páginas no livro.
Acto III
Jantar em casa de amigos. Levo vinho que sei ter um valor na casa das centenas de euros e nada digo. Na boca saberá a mesma coisa, para quê estragar o sabor com o odor a euros?! Anfitriã surpreende pela riqueza de paixões e pela debilidade e insegurança da postura. Não consigo deixar de tecer um comentário que penso que foi recepcionado. Recordo-me que já fui assim e a solução foi nunca mais olhar por cima do ombro, as vozes tornam-se cada vez mais indistintas e o múrmurio passa a melodia. Não és tu que estás mal, é o mundo, a sério acredita mas não o tentes mudar, muda tu, muda para um sítio onde nada precise ser mudado.
Passagem na pracinha, saudações habituais. Um pulo a outro bar, mais saudações. Humor pelo meio, trocadilhos, piadas, atrevimentos, toques... A mesma ementa de sempre e o mesmo resultado de sempre. Faço o que esperam de mim e animo as hostes. Vou dormir.
Acto IV
Dormi tão pouco... Acordo e ligo. Vamos 3, chove imenso, o carro lavado de vésperas, lama por todo o lado. Equipamos à chuva e junto da praia estamos. Mais de duas horas no mar e sinto que a mente está noutro lado. O mar não se compadece e atira-me vezes sem conta ao fundo ao ponto de me questionar o que ali faço. Lá faço uma ou outra "coisa", a que gostaria de puder chamar ondas. Já são 14h, ainda bem que pedi ao mano para buscar papás regressados dos 60 anos do velhote em terras do charuto. Telefonema só para ter certeza que tenho comida ainda que fria, passo por casa meto roupa "digna" a um saco e saio disparado.
Os papás estão óptimos, a viagem muito aquém das expectativas para as quais contribui. Um dos último refúgios de sonhos que ganharam vida, está a perder chama. Como, colho o que tenho a colher no maldito vício, lavo o carro, tomo banho, atiro a minha roupa para dentro do saco, onde está o vazio deixado pelas roupas que tenho agora no corpo. Despeço-me, brinco com o Gaspar uma última vez e arranco. Telefonema, sms e apanho-a mesmo à porta da FNAC.
Acto V
Está gira como imaginei. Ar sorridente, divertida, simpática, educada e sofisticada. Sei que criarei impacto e assim é. Todos questionam quem está comigo, menos o meu colega a quem pisco o olho, pois sabe do plano. Apresentações feitas e seguimos para o nosso lugar, ao ouvido ouço um sussuro: "tenho um casamento muito em breve, quero-te lá." Olho por olho, ou neste caso favor por favor.
Um local simples mas simpático, um enquadramento de surpresa com o que é apresentado. Coro de música clássica e orquestra de sopro. Concerto de Ano Novo em finais de Janeiro, devidamente justificado e contextualizado, passando a ter sentido. Olho em volta e vejo os colegas de trabalho. O impacto que os sons tiverem em mim foi tranquilizador. Jantamos rapidamente, uma vez mais no shoping e conversamos com palavras e com os olhares. Ambos concluímos que as mãos dadas de há pouco não foram apenas encenação... Voltamos costas e saímos, troca de sms posterior para concluir que ambos fazemos um para agradável, mas, mas há um mas...
Acto VI
Corro os três contadores. Organizo a roupa lavada e a fruta traziada da casa dos progenitores. Acendo a lareira, visto o pijama. Pego nas facturas do mês e trato do controlo de custos do mês de Janeiro, os resultados esses os esperados, sempre o mesmo. Tomara que as pessoas fossem números. Termino, pego num cálice e vinho do porto escorre pela minha gargante, sugados que foram os odores pelas narinas, escurecido que foi o olhar com a cor de escarlate oxidado. Na boca explodem sensações que deveriam estar no cérebro. Encosto-me atrás, escrevo estas linhas e penso: já foi, já terminou?