quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Vulcaozinho

Seja a época talvez, mas surge em mim um Charles Dickens e volto-me para as gavetas da memória procurando o meu conto de Natal. Primeiro as gavetas todas arrumadas, memórias impecavelmente dobradas, depois volto-me para as restantes e surgem as surpresas, a estória que já não recordava ter.

Entre o que reencontro, há o que gostaria não ter recordado e o que me faz esboçar um sorriso. Cinjo-me novamente ao espaço temporal desta época, mas naturalmente oscilo entre o desconforto e o sorriso, entre aniversários de projectos que deveriam ser de uma vida, mas que não superaram as primeiras crises e o que de mais próximo tenho de espírito natalício. Troco o que desejo tenazmente por um conto ao jeito o "Sexo e a Cidade", sem cidade mas com sexo e sem quarentonas ligadas à máquina que fingem viver.

Não era uma vez, assim começa. Faz dois anos, o motivo, jantar de Natal da malta de "A Nossa Confraria", algures em Felgueiras. Ainda para situar, tinha apresentado nessa mesma semana a demissão da empresa e deslocava-me num carro que seria meu apenas pelo tempo, que na carta dizia que me prostituiria a troco de dinheiro no final do mês.

Várias vivências, várias partilhas, número recorde de confrades. Trocam-se os galhardetes da faculdade por fotos dos miudos e eu fico sem nada que trocar. Julgo-me perto de uma noite catastrófica... Chega cabrito à mesa, ou direi cabritos, bem regados por um vinho delicioso que ostenta no nome a cabeça de um asno. O cabrito corta-se à tesoura da travessa ao prato e do garfo à boca é um instante refrescado e ardonado pelo óptimo vinho. Guardam-se as fotos, aumenta-se o ruído e frequência dos brindes. Cada qual cumpre o seu desígnio e come mais de um cabrito e bebe o correspondente a cerca de um terço do seu volume de sangue mas em vinho, que não é de vampiros que retrata o conto.

Mesa por mesa, o restaurante fica vazio e apenas sobra a imensa volúpia da nossa mesa e um quadro com uma notícia do Expresso indicando esta casa de repasto como uma essencial a frequentar para aqueles camelos de Lisboa à caça de safaris no deserto que é todo o país fora de Lisboa. Ainda bem que é cabeça de burro e não camelo que bebemos. O dono antevendo uma noite longa tenta subornar um desfecho mais rápido com digestivos e acerta trazendo CRF, o brazão máximo da Confraria. Não resulta mas estamos cansados, a conta é debitada num pedaço de papel rasgado na mesa e o número escrito é confirmado pela empregada que nos diz 37€ por pessoa... Faz-se silêncio, mas não para reclamar mas talvez para converter em escudos ou talvez direi, em fraldas. Silência interrompido pelo dono que diz, que são 30€ para facilitar o troco. Ainda atropelamos o silêncio e ele já pergunta em que ano nasceu o mais velho da mesa... são precisos cinco minutos para trazer uma garrafa de Cabeça de Burro com 36 anos e umas rabanadas quentinhas.

Depois de tanto calor, saímos e a contingência do frio obriga às despedidas menos calorosas da noite. Interrompo os abraços para me oferecer para ir à frente no carro, num gesto altruísta de quem não tem ninguém à espera em casa e que pode passar uma noite na esquadra a contar a outros desafortunados que dentro de mim está uma porção de um nectar divino, de um valor comercial bem simpático para as superfícies comerciais. Todos aceitam, até porque imaginam mulheres e filhos em casa bem quentes à espera deles e seguimos numa procissão de carros tipo casamento.

Percorremos menos de dez quilómetros e uma raquete mal visível na noite com a palavra STOP diz-me que chegou a hora do meu sacrifício. O plano resulta, tudo passa menos eu. Os habituais procedimentos, entrego documentos, com a mão esquerda segurando a direita enquanto os entrego ao agente para disfarçar o tremer. Angústia apodera-se de mim e só isso consegue esconder o pânico. "Sente-se bem?"... "Acho que sim"... Alguns segundos de observação, olha para trás, todos os alcoolímetros estão na boca de outros condutores e apenas vejo uma continência e votos de uma viagem segura. Descarga de adrenalina, tremo todo mas mantenho a capacidade suficiente de fazer a recta que me afasta do local até fazer uma curva e páro para conseguir respirar, como se tivesse sido mantido debaixo de água demasiado tempo, mas um segundo antes de desfalecer. Depressa batem ao meu vidro; todos estão lá, ninguém foi embora para as mulheres e filhos, todos aguardaram solidariamente. Meto o meu ar mais calmo, sem saber de onde veio e conto a estória com ar fanfarrão.

Cada qual segue o seu caminho e eu vou na minha mente ruminando os últimos vestígios de adrenalina e... e não pode ser, cortada a ligação da A41 à A3, tudo pára na Brisa e operação STOP com mais meios ainda. Novo jorro de adrenalina no organismo como um rio que corre num leito muito pequeno para tanta energia. Estou parado numa fila e aproxima-se o meu carrasco. Esboço uma argumentação na minha mente que acabara de parar numa operação STOP e que devia haver um certificado assim como num espaço de 24 horas o fizemos, para poupar dinheiro aos contribuintes e permitir apanhar os verdadeiros infractores. Claro que fiz isso que pensei, tal como pensei, só que calado. Habitual continência que julguei que me privaria de todos os prazeres, mas que apenas me retardou a viagem. Algumas horas de observação que não foram mais que segundos e ouço desejos de uma boa viagem. Assim sem mais e sei que o meu poder argumentativo resultara mesmo, eu não falando e ele não ouvindo.

Esta foi a droga mais potente que experimentei na minha vida, mas queria mais e mais. Nada podia parar este sentimento de invencibilidade. Pego no telemóvel, escolho criteriosamente mas sem critério o alvo e mando uma sms que diz simplesmente, algo alusivo a noite de prazer mas com hábitos de higiene primeiro. Envio e apanho a A4, não me recordando como lá cheguei. Rapidamente recebo sms de volta e é quando vejo que são quase 4horas. Como não sei, mas cheguei a casa dela e entro. Entro e vou directamente à casa de banho. As minhas instruções foram escrupulosamente seguidas, a escova de dentes já com pasta, o copo com água, a banheira cheia de água quente e espuma, as velas de cheiro...

Estou fresco, estou com ela, estou com os sentidos entregues num nirvana de intensidade única e indescritível. Ela sabe-o, ela sente-o e sem a mesma adrenalina que eu esforça-se para me encontrar na estrada do prazer. Apanha-me está quente, sem forças mas com imenso fulgor, doida, perdida, louca. Damos a mão, sintonisamos os sentidos e cortamos a meta juntos com o estrondo de um Big Bang à escala do nosso universo...

Não sei as horas, estou ressacado, acordo quando de dormir não me recordo. Sinto o peso dela no meu peito e que bem me faz sentir. Tranquilamente continuamos o significado do momento de partilha e saio. São 11horas estou a jogar futebol com os meus amigos, a minha habitual agressividade e entrega em campo é substituida por um sorriso que mostra o universo mas esconde o meu mundo. A mais poderosa droga, as horas mais intensas da minha vida, o meu Trainspotting.

Pela tua energia, pela tua entrega, pela forma como escolheste partilhar com significado estes momentos contigo. Pelo prazer da descoberta, pela coragem com que juntos derrubamos fronteiras... Te presto um solene tributo por quem és, mas acima de tudo me teres aceitado como sou, sem me tentares mudar ou compreender. Vulcaozinho te apelidei e muito feliz fui no baptismo, porque energia, força e deslumbramento são átomos na tua essência...

E não, não viveram felizes para sempre...


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