
Desta vez é diferente... Não, não é, é o replay da mesma sensação estranha que invoca um habitual fatalismo associado ao acto que se avizinha. Queria que fosse novo, queria sentir algo diferente.
“Desculpe, posso tirar os sapatos? É que vai accionar o alarme e pouparia uma data de trabalho ao seu colega e a mim”. Um riso trocista ou de antecipada satisfação fez-me sinal para prosseguir e claro, a profecia concretiza-se. O látex das luvas explode nas mãos e por antecipação sinto o afagar minucioso do toque masculino, que por natureza ou educação, aprendo a desprezar nestas situações.
De uma ponta à outra, percorro corredores com afinco mas pouca determinação. Prometera cigarros a um preço que menos custaria destruir os pulmões. Uma e outra vez, e nada, uma simples sms liberta-me de uma promessa não cumprida. Tomo o meu lugar na multidão aguardando o pássaro de ferro, como Ícaro toma as suas asas.
A lotaria do lugar. De terra para o avião, o primeiro ritual, perceber qual seria o meu lugar, tão certo como João Paulo segundo beijar o solo que pisa, do avião para a terra. 31B, significa avançar por um corredor estreito até ao final do avião, apreciando lutas titãnicas de quem procura arremessar violentamente bagagens para um espaço que a física diz ser impossível. Já tenho a compreensão que ficarei no meio de 2 perfeitos estranhos, mas antes assim, pelo menos não serei empurrado para conversas de circunstância, e também não terei de aturar arrufos ou cenas mais melosas de namorados. Cheguei, limpo o cheiro de suor das narinas dos que bravamente se batiam no campo de batalha que testemunhara; no corredor uma mulher, na janela um homem. Ele concerteza alemão, ela talvez holandesa, ou belga. Um excuse me de circunstância apontando para o lugar que era meu. Olhar perdido, o dela pelo menos que o meu não vejo. Decifro um vocábulo que ouvi de uma hospedeira e lanço, presumidamente desculpe na tradução; sim é alemã. Aí ela levanta-se e eu tomo o que é meu por direito. MP4 fora da mochila, e o livro, uma última vista de olhos em volta. “Mas, mas ela tem a caras, será que só quer ver as fotografias? Nem sequer há gente muito bonita”. Profiro uma sentença qualquer em português e ela impávida prossegue a leitura numa delonga que denota que faz algo mais que ver imagens. “Espere lá é portuguesa ou não? É que estou confuso.” Quem diria é mesmo Tuga. Piada habitual, sorrisos e pouco mais digno de nota no resto da viagem para além de uma ou outra situação ridícula, cuja personagem central admire-se foi ela e não eu. Uma vista de olhos pelos aspectos ergonomicamente capazes de dar prazer ao homem e nada de destaque; aliança no dedo sentencia uma viagem silenciosa. Um sorriso despedida no final...
Não há muito que ver na janela, está nublado. Sono dos justos, o alemão é tiro e queda, haverá de acordar mais tarde já toda a gente almoçou e foi recolhida a comida. Com ar satisfeito abordo-o e aponto para o tabuleiro como quem diz, isso está aí graças a mim, come e agradece. Só que a cara dele denota algo diferente de agradecimento... Pois ficou enjoado com o cheiro. Ainda encetei uma graçola, quanto a mim extremamente bem conseguida, mas o máximo que consegui foi que passasse de cara de enjoo para inexpressivo. Não falava inglês quero eu crer...
No banco de trás outra tuga. Esta é fácil de perceber, embora em inglês fala pelos cotovelos e não se apercebe que para o seu interlocutor sueco a visita a Portugal terminara quando saíra do aeroporto Sá Carneiro. Para ele bastava saber que ouve um tipo devasso qualquer, que escrevera numa métrica exacta, sentimentos que cabem tanto naqueles cantos como a bagagem nos compartimentos – certo é que veio toda, engane-se a física- um livro intitulado “Os Lusíadas”. Bastava saber, não precisavam que o lessem para ele, alguém diga isso à tipa. Estou tão absorvido em perceber os níveis de irritação que a tipa provoca no seu vizinho, que nem entendo a intolerância que eu próprio estava a desenvolver.
Os microfones debitam sem qualquer estética, a mensagem repetida vezes sem conta informando que iniciamos a descida para Frankfurt. Desperto, sem me ter apercebido de ter partido. Nos ouvidos o plano de fundo conquista de novo a perspectiva principal e ouço a banda perfeita na mensagem, imperfeita na situação. “Podia ser mais bonita”, penso eu. A mesma voz que dentro de mim faz esta reflexão, depressa obtém resposta de outra voz, dizendo: “claro que não quando entraste viste todas e não havia nenhuma e a menos que alguma tivesse entrado durante o voo...” Ela está impaciente e percebo um pseudo tolerante sinal para desligar o aparelho. Coloquei o meu mais expressivo olhar para tentar comunicar: “então não vês que é a música Creep?!” Arrepios senti com o gesto de mão que se seguiu e a ovelha tresmalhada depressa se reuniu ao resto do rebanho cumpridor...
Volto a dar utilidade às pernas. Verifico a minha porta de embarque e registo um atraso de meia hora no voo de ligação. Procuro a casa de banho. Até aqui tudo normal. Já sou estrangeiro no meio de estrangeiros, num país que não é o nosso. Puxam-me o braço: “desculpe fala português?” Seguindo o exemplo da miúda que se sentara ao meu lado, ou eu ao lado dela, nas mais de duas horas anteriores, faço uma pausa e respondo um pouco convicto sim.Afinal não sou estrangeiro, trarei uma bandeira com cinco quinas na testa?! Ou será que trago no semblante a alegria de um tetra campeonato de véspera? Futebol não é decerto que o hábito de ganhar não é novo, e da novidade se faz o despertar de sentidos. Então é porque tenho mesmo cara de português. Escolho orgulhar-me disso e tomo o bilhete da senhora sozinha com idade para ser minha avô e ofereço-me para a levar à porta de embarque dela. Descobre que ela fala algo entre português e alemão. A todo o caminho agradece-me como se agradece um bênção divina e lamenta-se não ter o marido que esse sim sabia tudo. O telemóvel já está ligado e depressa o trabalho chega até mim. Tenho de consultar as placas em alemão para me certificar se não aterrei num aeroporto português. Uma voz do lado de lá do telefone, e uma a meu lado a puxar-me pelo braço aflita por estar atrasada. Uma palavra para acertar a pessoa ao telefone que ouvia quando não era de todo verdade, e um olhar reconfortante para a avozinha para tranquilizar. Chegamos, deixo-a, ouço uma prece de gratidão, uma mesinha que sei que tem poderes mágicos e me protegerá, ou assim escolho acreditar...
Chego à minha porta de embarque. Faltam duas horas, música, livro, lojas, que escolho fazer? Ainda para mais a porta foi alterada e nem sei onde é. Não escolho nada, abro automaticamente a mochila, puxo o meu bloco de notas com teclado e deixo que eu seja escolhido. Tecla após tecla debito palavras e linhas. Retiro do espírito estas horas de viagem como o excesso de bagagem que não necessitamos. Agora sim posso ir à casa de banho...
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