quarta-feira, 27 de maio de 2009

Retratos humanos

Muitas são as imagens, reportagens, sons e todo o tipo de bandeiras que acenam na memória e trazem o tema à realidade.

Recordo-me, recordam-se todos de certo, de uma reportagem talvez sic/visão, talvez TVI quem sabe. Um supermercado em Lisboa, um grupo de desafortunados, hora de fecho, a noite, sempre pela noite... Dias certos da semana, a mesma rotina, o mesmo circuito, as mesmas pessoas. Sai caixote de lixo, avançam hierarquicamente as pessoas, vence a idade, o sexo, a força e lamenta-se a senhora idosa portuguesa pela excessiva violência dos homens do leste. Tremor de terra nos media nos dias que se seguiram, o habitual pseudo celeuma da ânsia do domínio do share. Tudo passa, eram só tipos do leste e a senhora idosa provavelmente já faleceu, pudera já não tem idade para enganar a morte.

Um tempo mais tarde, sem precisão Suíça, nova reportagem ou vídeo via net, com a mesma imprecisão me recordo. Cenário diferente, mudam os intérpretes, muda de drama a expressão vanguardista. Uma espécie de Dumpster Diving dos tempos modernos. Nova Iorque, ou se preferirem New York, tudo jovens genuínos americanos (seja lá o que isso for), bem vestidos em trapos e em semblante aprimorado, num desfile por avenues bem iluminadas, ostentando tesouros em sacos de plástico. Confuso, escuto a justificação, combatem contra o esbanjamento de comida, protegem o ambiente e poupam uns cobres que depois gastam em cultura e ideais mais sublimes. Efemeridades ditadas pela moda...

Um email, uma curta metragem, imensos sorriso no final, protegidos pela distância física e temporal que só a curta metragem desvanece. No presente, deste lado, a tensão do sentimento de culpa e uma amálgama de sensações de desconforto instintivo, que a condição humana desta vez não apaga. Furto-me, de mim mesmo, mas sem redundâncias, o direito, melhor o dever, de comentar porque rotular um simples sorriso, o sinal da cruz, a bondade, o desprendimento, o significado, a insanidade consumista; tudo misturado numa ordem lógica que vai para além da partitura que o Criador concebeu. Fale a Eva, fale Adão, fala tu mesmo serpente, qual achas que é o paraíso?!

http://www.cultureunplugged.com/play/1081/Chicken-a-la-Carte


Não posso esquecer, não quero recordar, no entanto vivo-o. A precisão aqui é total, sei onde, sei como e sei porquê. Pudera, vejo-o todas as semanas sem vídeos, sem televisão sem internet. Não é em Lisboa, não é em New York, nem cabe na curta-metragem. A cidade é a que escolhi como minha, as pessoas que me cruzam na rua. A crise retira o disfarce, afasta a vergonha, os carros aglomeram-se à espera; a polícia passa, não é ASAE que motivo para intervir?! Chega a comida, ordeiramente cada qual recolhe o que pretende, sem olhar a quem está ao lado e muito menos a quem passa. Ali mesmo ao lado, um palhaço sentado num banco de jardim, volta costas e sorri de frente para os carros que chegam, param e gritam pedidos para uma caixa metálica.

Sinto-me enjoado, não pelas pessoas que apanham comida menos boa ou lixo melhor, mas pelo cheiro a hambúrgueres que vem da beira do sr. mac palhaço. Uma fila aumenta, outra diminui, amanhã cruzo-me com as pessoas na rua e não sei em que fila estiveram. Não me interessa, não me obstrui a consciência.

Aqui tão perto...


quinta-feira, 21 de maio de 2009

Engenharia Alemã

Sala a meia luz, função dos auscultadores e tradutor diferente do pretendido; orelhas quentes e aconchegadas, passo do inglês para o alemão, depois para o espanhol e por fim o italiano. A voz não satisfaz, procuro com o olhar e na cabine antevejo as formas que dão luz aos sons; o espanhol soa-me estranhamente melhor...

Regresso ao estado anterior e a frequência de piscar de olhos altera-se no sentido mais óbvio. Peso titânico se abate sobre as minhas sobrancelhas, ceder não é solução. Levanto-me ao som da sirene, só que não sou bombeiro nem a sirene tocou, mas a velocidade, essa sim foi exactamente simétrica.

Malditos sensores... Lá arranjo artimanha de garantir que a água corra e lanço no rosto algo que me beija e refresca o suficiente para perceber que é água. Primeira ida à parte menos nobre da casa-de-banho e a surpresa que ainda não sei. Inspirado pela acção da água no rosto, experimento acção refrescante no interior. O efeito não é o mesmo, pelo menos o sabor não. A quantidade de água ingerida é proporcional ao número de vezes que me permitem ter consciência crescente da surpresa.

Imaculadamente limpa, isenta de odores, hora após hora, 9 horas depois, e trezentas e muitas pilas após, algumas delas diversas vezes e... isenta de odores e imaculadamente limpa. Mas como? Mas eu, mas eu... Eu também não sujei nada! Um dos melhores postais do valor da Engenharia Alemã.

Sempre fui confrontado profissionalmente com a filosofia alemã de trabalho. Há dois anos recuando no passado, após uma entrevista longa, intensa e com o perfil de aprendizagem imenso, apresentam-me proposta que após algumas contas de dividir mentais, de uma cabeça cujos mecanismos linguísticos foram em língua anglo-saxónica durante mais de uma hora, ao quanto que a matemática resume-se à universalidade do conceito maternal da língua. Saio altivo num sentido estético de orgulho profanado pela vaidade. Afinal oferecem três vezes mais do que eu disse auferir. A cara não foi de espanto porque a divisão teve de ser por 14 até chegar a esse valor. Estranhos os caminhos posteriormente trilhados.
Tudo é relativo, na negociação, na vida; há 4 meses percebo o real valor da engenharia alemã e percebo que o leque de pavão deveria ser trocado por uma venda nos olhos...
Uma vela, uma simples vela. Um urinol o habitual problema, e uma vela. Resolvido! As casas de banho alemãs são de facto um manancial de utilidades; recordo-me por exemplo de um urinol com suportes para deficientes, a altura que só um gigante, ou indivíduos oriundos de certas regiões de África, conseguiriam utilizar. Desliguei o processo mental e simplesmente aguardei; não foi necessário muito tempo, afinal estava perante o meu primeiro vomitório, higiénico, seguro e ergonómico...
É isto o que um povo incapaz de tomar uma decisão enquanto individuo, mas obstinados no cumprimento dos desígnios ditados colectivamente, consegue produzir. Um efeito simples de anatomia psicológica confirmada. É certo que passamos por uma fase que todos os rapazes quiseram ser bombeiros, mas daí a direccionar continuamente a "mangueira" para a pequeníssima figura da vela de forma inconsciente, vai uma muralha da china. É um desejo inato que se sobrepõe a um actual flagelo de homens a espreitarem para o urinol do lado, o que se reveste numa dupla funcionalidade no respeito das liberdades e intimidades alheias...

Um alemão não aborda é abordado. Não ri sem ser solicitado, não chora sem ser autorizado. Expia os pecados de um passado que deseja mais distante mas que não o é efectivamente. Finge-se europeu quando no fundo são uma raça predisposta e programada a vencer. Funcionam em colmeia e o indivíduo anula-se a si mesmo.

Muitas linhas mais poderia riscar, como a aranha tece a sua teia. Contudo muita seda ainda falta para uma visão completa e o tempo terá tempo, deixo seguir.
Desejo ser alemão socialmente, para arranjar espaço e ser quem sou... Coisas minhas

domingo, 17 de maio de 2009

Redescoberta de sentidos

Absurdo, incrível, fantástico, arrebatador, sufocante, agonizante... Mescla de sentidos, emaranhado de sensações, plenitude de sentimentos. Allien nativo num planeta estrangeiro... Que é isto? Mas que é isto? Sentimentos que nunca o foram, tendo sempre sido. It makes sense, simplesmente aparecem, surgem, contemplar não basta, sou trucidado como frágil papel de arroz sobre os pés de uma manada de elefantes furiosos.

Procuro uma âncora que me segure ao fundo, necessito de uma rede de segurança que me separe da dor física de me espatifar num solo, preciso de uma face para este deus pagão. Busco na memória não encontro. Música, livros, nada... Embriagado com o presente, procuro definições e similaridades no passado e no futuro.

Geralmente escrevo; lendo questiono-me: quem é este? Estranho, parvo, similaridades de estados de alma, fusão de ideias, mas ainda assim uma outra pessoa, uma outra vida. Só seguro a caneta, então quem a empurra? Uma vez houve que escrevi, mas não era no passado, não era no presente. O futuro é hoje presente e melhor âncora não encontro, tirem a rede que o chão não me assusta o deus, a Deusa tem um rosto...

"Tu e eu... só os dois, tu e eu...

Em partilha, em fusão, em simbiose... tu e eu...
Nós os dois... tu e eu...
Por breves momentos tudo é nosso.
Ninguém nos pode roubar
Tudo isso é nosso, tu és minha
Quando deslizamos ou caímos,sempre,a descoberta é nossa, a recompensa imensa!

Tu e eu... As tuas formas, a tua suavidade, a tua elegância,
Moldadas pelo meu peito que em ti repousa,
Pelos mais braços que te agarram e sacudem vigorosamente,
Pelos meus pés que nos guiam em direcção
Da mais perfeita contemplação de prazer... Tu e eu...

Foste feita à medida da minha alma,
Foste feita sem ímpar,
Foste feita para ser minha... tu e eu...
Nunca será a última,

Não nesta tarde, não nesta manhã.
Pedes-me sempre mais e Eu quero seguir-te, deixar-me guiar.
Por ti venço a exaustão do corpo,
Apenas pela explosão dos sentidos... tu e eu...

Para quê explicar o que não pode ser explicado?!
Para quê explicar o que não podem entender?!
Para quê explicar o que apenas faz sentido ser vivido?!
Para quê, para quê?

És a minha Meca, o meu Santo Graal,
O meu unicórnio, o meu tormento, a minha perdição,
És meiga, gentil e terrível na tua inocente cólera.
Tu e eu, eu e tu, ou simplesmente NÓS.

Ti ringraziamo per aver effettuato mi sento così speciale"
(Sono in Amato, 20 de Outubro de 2008)

Tal como a assimetria de qualquer rosto humano, também estas palavras são assimétricas com os sentimentos despertados. Tiram-se os espelhos e o que fica é o mais genuíno retrato do que sinto, transportado do passado...
APARECE...

sábado, 16 de maio de 2009

Salsicha de merda


Era uma vez no ar...
Caguei na Alemanha,
Caguei em França,
Caguei em Espanha,
E até no Luxemburgo caguei.

Quando não mais caguei
A Portugal cheguei.
Odeio-te salsicha gigante
Para mim mais não és que merda
Como tanta outra merda nesta vida

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Mensagens do outro lado do Atlântico

Hannover, 23:49 horas de Portugal, cá só somar mais uma hora. Algo me faz sentir saudades o que não é comum. No quarto do hotel, despachados que estão os emails de trabalho, lanço-me em algo extremamente familiar que dilui as distâncias. Televisão desligada, quarto com temperatura tropical, pousado na cadeira a pele do rabo, em frente um espelho... Quem sou eu?!

O reconforto, o apaziguamento surgiu não a 3,2 horas de distância de avião e duas escalas, mas do outro lado do Atlântico. Amigas mexicanas, conhecidas em Madrid em plena gripe suína, muita alegria, algo familiar, essências estranhamente visíveis.

Quebrar de longos meses de magia. Um tipo homónimo no Brasil, docente de Direito foi tudo quanto bastou para receber comentários, textos, aprender direito, sentir-me próximo e quase ter um canudo de Advogado; uma longa estória cujo sorriso provocado é imensamente maior. Creio ter perpetuado algures esses sentimentos... O pincel ao pintor, o fado ao fadista...

"Olá meu caro Joel Braga.
Saiba que é um enorme prazer falar consigo, digo escrever-lhe umas poucas linhas, fato é que acá estou no Brasil na cidade de Belo Horizonte Minas Gerais, estou enviando-lhe esta saudação juntamente com um pedido de desculpas pelos e-mails que lhe foram equivocadamente enviados por meus colegas do curso de direito e também por meus alunos da filosofia, com efeito, por quaisquer outros transtornos que lhe causaram esta enorme confusão quanto a sermos um só. Pelo visto temos pais com muitissimo bom gosto pois não é todo dia que aparecem homônimos Joel Braga incomuns de fato tais como o são os Joões ou Josés, Antonios, ou ainda o mais comum aqui no Brasil os Luis(z)es com z ou com s são uma verdadeira praga que assola estas terras tupiniquins.... Em tempo possuo outro e-mail que é o joelbraga7@gmail.com que causou essa confusão dos diabos mas agora que finalmente tenho o seu e-mail e estou utilizando este do www.yahoo.fr que possuo desde que morei na Suiça espero que maiores transtornos não lhe sejam causados. Obrigado.
Atenciosamente.
Um abraço
Joel Braga" Não eu, mas o outro.

"Sorry for writting you until now, but when i come back to my office i found a lot of work to do we are happy for knowing u, and more to be in touch by email. We really wait for u in mexico, you will not regret it.

I send u some pictures, and a big hug from Mty"

Vazio

Desprovido de sentimentos,
Cor sem luz
Som no vácuo
Paladar incipiente
Odor estéril
Tacto dormente
No entanto, Eu existo

Luz vermelha apagada
Uma casa vazia
Pantufas no chão
Refúgio que é covil
Escuridão no lugar da luz
Assim, O Nós anseio

Lágrima desamparada
Abraço desmaterializado
Beijo perdido
Imagem apagada
Partilhar credibilizado
Sentimento fusco
Egoísmo exaltante
Como tal, O Tu busco

Vazio sufocante
Implosão asfixiante
Suspiros esmagados
Gestos resignados
Metáforas degradadas
Gritos surdos
E o, Ele, Vós, Eles?

Where is the wolf? Will i see him when i cross the bridge?

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Estrangeiro mas pouco


Desta vez é diferente... Não, não é, é o replay da mesma sensação estranha que invoca um habitual fatalismo associado ao acto que se avizinha. Queria que fosse novo, queria sentir algo diferente.

“Desculpe, posso tirar os sapatos? É que vai accionar o alarme e pouparia uma data de trabalho ao seu colega e a mim”. Um riso trocista ou de antecipada satisfação fez-me sinal para prosseguir e claro, a profecia concretiza-se. O látex das luvas explode nas mãos e por antecipação sinto o afagar minucioso do toque masculino, que por natureza ou educação, aprendo a desprezar nestas situações.

De uma ponta à outra, percorro corredores com afinco mas pouca determinação. Prometera cigarros a um preço que menos custaria destruir os pulmões. Uma e outra vez, e nada, uma simples sms liberta-me de uma promessa não cumprida. Tomo o meu lugar na multidão aguardando o pássaro de ferro, como Ícaro toma as suas asas.

A lotaria do lugar. De terra para o avião, o primeiro ritual, perceber qual seria o meu lugar, tão certo como João Paulo segundo beijar o solo que pisa, do avião para a terra. 31B, significa avançar por um corredor estreito até ao final do avião, apreciando lutas titãnicas de quem procura arremessar violentamente bagagens para um espaço que a física diz ser impossível. Já tenho a compreensão que ficarei no meio de 2 perfeitos estranhos, mas antes assim, pelo menos não serei empurrado para conversas de circunstância, e também não terei de aturar arrufos ou cenas mais melosas de namorados. Cheguei, limpo o cheiro de suor das narinas dos que bravamente se batiam no campo de batalha que testemunhara; no corredor uma mulher, na janela um homem. Ele concerteza alemão, ela talvez holandesa, ou belga. Um excuse me de circunstância apontando para o lugar que era meu. Olhar perdido, o dela pelo menos que o meu não vejo. Decifro um vocábulo que ouvi de uma hospedeira e lanço, presumidamente desculpe na tradução; sim é alemã. Aí ela levanta-se e eu tomo o que é meu por direito. MP4 fora da mochila, e o livro, uma última vista de olhos em volta. “Mas, mas ela tem a caras, será que só quer ver as fotografias? Nem sequer há gente muito bonita”. Profiro uma sentença qualquer em português e ela impávida prossegue a leitura numa delonga que denota que faz algo mais que ver imagens. “Espere lá é portuguesa ou não? É que estou confuso.” Quem diria é mesmo Tuga. Piada habitual, sorrisos e pouco mais digno de nota no resto da viagem para além de uma ou outra situação ridícula, cuja personagem central admire-se foi ela e não eu. Uma vista de olhos pelos aspectos ergonomicamente capazes de dar prazer ao homem e nada de destaque; aliança no dedo sentencia uma viagem silenciosa. Um sorriso despedida no final...

Não há muito que ver na janela, está nublado. Sono dos justos, o alemão é tiro e queda, haverá de acordar mais tarde já toda a gente almoçou e foi recolhida a comida. Com ar satisfeito abordo-o e aponto para o tabuleiro como quem diz, isso está aí graças a mim, come e agradece. Só que a cara dele denota algo diferente de agradecimento... Pois ficou enjoado com o cheiro. Ainda encetei uma graçola, quanto a mim extremamente bem conseguida, mas o máximo que consegui foi que passasse de cara de enjoo para inexpressivo. Não falava inglês quero eu crer...

No banco de trás outra tuga. Esta é fácil de perceber, embora em inglês fala pelos cotovelos e não se apercebe que para o seu interlocutor sueco a visita a Portugal terminara quando saíra do aeroporto Sá Carneiro. Para ele bastava saber que ouve um tipo devasso qualquer, que escrevera numa métrica exacta, sentimentos que cabem tanto naqueles cantos como a bagagem nos compartimentos – certo é que veio toda, engane-se a física- um livro intitulado “Os Lusíadas”. Bastava saber, não precisavam que o lessem para ele, alguém diga isso à tipa. Estou tão absorvido em perceber os níveis de irritação que a tipa provoca no seu vizinho, que nem entendo a intolerância que eu próprio estava a desenvolver.

Os microfones debitam sem qualquer estética, a mensagem repetida vezes sem conta informando que iniciamos a descida para Frankfurt. Desperto, sem me ter apercebido de ter partido. Nos ouvidos o plano de fundo conquista de novo a perspectiva principal e ouço a banda perfeita na mensagem, imperfeita na situação. “Podia ser mais bonita”, penso eu. A mesma voz que dentro de mim faz esta reflexão, depressa obtém resposta de outra voz, dizendo: “claro que não quando entraste viste todas e não havia nenhuma e a menos que alguma tivesse entrado durante o voo...” Ela está impaciente e percebo um pseudo tolerante sinal para desligar o aparelho. Coloquei o meu mais expressivo olhar para tentar comunicar: “então não vês que é a música Creep?!” Arrepios senti com o gesto de mão que se seguiu e a ovelha tresmalhada depressa se reuniu ao resto do rebanho cumpridor...

Volto a dar utilidade às pernas. Verifico a minha porta de embarque e registo um atraso de meia hora no voo de ligação. Procuro a casa de banho. Até aqui tudo normal. Já sou estrangeiro no meio de estrangeiros, num país que não é o nosso. Puxam-me o braço: “desculpe fala português?” Seguindo o exemplo da miúda que se sentara ao meu lado, ou eu ao lado dela, nas mais de duas horas anteriores, faço uma pausa e respondo um pouco convicto sim.Afinal não sou estrangeiro, trarei uma bandeira com cinco quinas na testa?! Ou será que trago no semblante a alegria de um tetra campeonato de véspera? Futebol não é decerto que o hábito de ganhar não é novo, e da novidade se faz o despertar de sentidos. Então é porque tenho mesmo cara de português. Escolho orgulhar-me disso e tomo o bilhete da senhora sozinha com idade para ser minha avô e ofereço-me para a levar à porta de embarque dela. Descobre que ela fala algo entre português e alemão. A todo o caminho agradece-me como se agradece um bênção divina e lamenta-se não ter o marido que esse sim sabia tudo. O telemóvel já está ligado e depressa o trabalho chega até mim. Tenho de consultar as placas em alemão para me certificar se não aterrei num aeroporto português. Uma voz do lado de lá do telefone, e uma a meu lado a puxar-me pelo braço aflita por estar atrasada. Uma palavra para acertar a pessoa ao telefone que ouvia quando não era de todo verdade, e um olhar reconfortante para a avozinha para tranquilizar. Chegamos, deixo-a, ouço uma prece de gratidão, uma mesinha que sei que tem poderes mágicos e me protegerá, ou assim escolho acreditar...

Chego à minha porta de embarque. Faltam duas horas, música, livro, lojas, que escolho fazer? Ainda para mais a porta foi alterada e nem sei onde é. Não escolho nada, abro automaticamente a mochila, puxo o meu bloco de notas com teclado e deixo que eu seja escolhido. Tecla após tecla debito palavras e linhas. Retiro do espírito estas horas de viagem como o excesso de bagagem que não necessitamos. Agora sim posso ir à casa de banho...

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Madrid

Madrid, que falar sobre Madrid?! Assentando a poeira no seu devido tempo, sempre é mais fácil subtrair um pouco a euforia da novidade, da descoberta, das expectativas goradas, da imensidão do mundo novo que abraço no início de uma nova viagem.
Descrever qualquer viagem para mim, tem sempre um denominador comum, algo a que não me esquivo de exaltar pela aspereza com que me deixo moldar pelas mesmas. Oprimo-me, com alguma relutância é certo, mas ainda assim com assertividade, a retratar esse denominador comum, falando mais de Madrid e não tanto da minha Madrid.
Mais duas das três notas prévias, antes de me lançar no desafio. Tento manter sempre presente a disparidade imensa do significado dos verbos estar e conhecer. Estive em alguns lados, conheço muito poucos; estive em Madrid, não conheço Madrid. Último exercício do prelúdio, serei guia mas apenas da memória, não intento nada mais para além disso...
Primeiro associação de ideias com Madrid, La Movida Loca. Vários pontos, várias praças, o mesmo conceito, multiculturalidades, inter-racial, álcool, música. Tudo ingredientes da cidade mais ruidosa da Europa. Tudo verdade, contudo captei muita disciplina, se é que a há na recreação nocturna, sendo o balanço uns decibéis abaixo do que assumi como verdade. Benefício da dúvida, "temos de dar o desconto, pois podemos estar desfasados dos pontos chave". Nota positiva para Plaza e Calle Mayor, nota bastante negativa, pela opressão sentida na Chueca...

Tema mais delicado, mais visceral para mim, o movimento gay. Programa RTP1, "Conta-me como foi"; Paris estava para altura em termos de expressão e liberdade heterossexual, como Madrid está para a homossexual nos tempos actuais. Não sou homofóbico, ou melhor não me considerava, mas senti-me oprimidíssimo, uma minoria, um perfeito ensaio da sexualidade, em que o que assumo como maioritário passa a minoritário. Cidade meca, para casais gays e toda a sua exuberância, são imensos e as expressões de intimidade transcendem em muito o que socialmente é aceite para os casais ditos normais, em todos os países por onde passei. Senti-me afrontado nas minhas liberdades e ao mesmo tempo ébrio pela curiosidade; senti-me por vezes peça de carne, outras mirone doentio. Aspecto positivo a liberdade e igualdade de direitos; aspecto negativo os excessos de quem não sabe viver a liberdade e usa pretexto da anterior opressão, para oprimir (Chueca é o exemplo).
Cidade funcional. Rigor na limpeza urbana, bem dotada de infraestruturas, excelentes espaços verdes em termos de qualidade, localização e quantidade, sistema de metro bastante extenso e intuitivo; não se sente insegurança, polícia sempre presente. O custo de vida é bastante elevado falseado pela questão turística, os preços acrescem perto dos centros de interesse e ao fim-de-semana; uma cerveja vai dos 3€ aos 6€. Habituais presenças de arte de rua na sua expressão mais bela, como também da mendicidade.
Arquitectonicamente, espaços bem conseguidos, funcionais e sem muitos edifícios devolutos nas zonas históricas. Ponto positivo, sentimento de cidade como um todo, organismo vivo, ponto negativo o excesso. Aspectos culturais. Imensa oferta, a preços convidativos ao contrário de tudo o resto. Sem grandes filas, bem organizadas e bem assinaladas. Vibra cultura a cidade, orgulha-se da usa herança, do seu espólio e demonstra-o. Arrisco-me alongar e não mais terminar, como tal abro o para quedas antes de tempo e recomendo um qualquer guia, onde seja descrito com rigor e imparcialidade. Permito-me contudo a falar do orgulho mais do que turístico da cidade, por D. Quixote e seus companheiros. Uma vez falado, calo-me e deixo o para quedas fazer o seu papel...
Cultura local. Multidões de gente em todo o lado, difícil reconhecer o verdadeiro madrileño, se é que o existe. Doença de qualquer grande cidade, a mescla é tão grande que obriga a uma redefinição da identidade. Madrid tem algo diferente contudo, reúne numa só cidade um só país com todas as suas diferenças; encontramos um pouco de cada uma das regiões de Espanha. Tipicamente as pessoas são afáveis, expressivas e comunicativas, visão bem castelhana. A gastronomia é a esperada, não me vou alongar, apenas registo que fugir dos circuitos habituais pode assegurar baixa de preço, mas não aumento da forma genuína ou qualidade da comida.

A minha Madrid. Foi um desafio a viagem pela companhia, e como desafio que foi, grande foi a recompensa, alguns atritos, mas imensa partilha e sintonia; parabéns às meninas e ao vitoriano. Pelos três espécimes mexicanos que juraram-se isentos de gripe suína, e que acrescentaram alegria adicional a uma noite de Sábado memorável. Uma tal de Sónia Braga que me trouxe ao consciente memórias que não eram minhas, na libido do homem que ainda não nascera. Actriz na televisão, mulher cuja idade não esconde as formas frondosas de outra época e de uma simpatia e simplicidade únicas.

A importância desta viagem nesta frase da minha, assemelha-se a um parênteses que permite respirar. Aberto o parênteses, a relutância em o encerrar é superior ao previsto, salve-se que aí vem Hannover...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Jardins das Delícias

Caótica a torrente de ideias, aglomerando-se numa nuvem densa de profusões, desprovida de significado, mas com enorme conteúdo.

Estória, conto, relato, diário... primeira pessoa, segunda pessoa, singular ou plural. Não encontro uma linha de raciocínio e temo esvaziar conteúdo desconexo com os intentos, permitindo-me rodear, acercar, impregnar nesta nuvem. À minha frente o prato com a sopa de letras, nas minhas mãos a colher; as ideias estão lá, a colher não encontra solução no emaranhado e relutantemente avança. Surjam como surjam, o sabor e o significado são os mesmos...

Curiosa a forma como uma imagem, abraça uma realidade bem mais vasta do que é retratado. Pudesse escolher uma imagem e não seria certamente essa, mas desta feita foi a imagem que me escolheu a mim. A obstinação por captar todo o génio; era uma vez no Museu do Prado... Mergulhar de cabeça num mar magnífico, rodeado de belezas indecifráveis ao vulnerável olho e mente humana. Debater contra toda a exaustão do organismo, física e anímica, afugentando a ideia de voltar à superfície onde a atmosfera me é mais familiar e respirável. Sem ar nos pulmões, com os músculos sem réstia de energia, arrastamo-nos sala ante sala, no labiríntico cenário de orgia artística, buscando a imagem que desconhecia, mas com uma profusão invisível me atraía.

A última sala, o último amontoado de gente... Depois disto levitarei, em distâncias e espaços imemoráveis, pelo pronúncio de conforto do estômago, descanso da carruagem que sentiu cada pedra da calçada percorrida. Tri-partida e una simultaneamente, sentido lógico da esquerda para a direita, maior dimensão central. A dimensão não ordena, a sequência é errática, as cores prosperam identicamente. Calor dá lugar ao gelo, conforto substituído por repúdio, alucinação por receio, reconhecimento com subtracção de identificação. Perco-me em tempos, em espaços e em vazios, oscilando entre a catalogação de loucura, ou a partilha quântica.

Compreendo a inquisição, sim compreendo-a, acho um significado. Uma compreensão circunscrita a esta situação, mas dilatada no esoterismo que daí extravasa. Divino, carnal, demoníaco, ou inocência, despertar, arcar consequências, ou, puro, devasso, humano... Acercar-me do pormenor seria acreditar capaz de penetrar no génesis de um vulcão e sair incólume, devassar a autenticidade de autor, lobotomizar a sua nascente de criatividade, sodomizar, a visão. Não me posso esquecer que não escolhi, fui escolhido.

Pela obra não chego ao autor, pois há algum tempo julgo que o autor que busco nada é mais que a caneta, o martelo, o pincel, o instrumento musical. O autor esse, pelo anonimato encontra a plenitude dos seus intentos. Traçados paralelos no tempo, encontro-me atravessar as mesmas pontes de Bosch. Figura contraditória e moralmente herege da obra. Clandestino com existência pública, indigente opulento, casto na devassidão.

Parco em palavras que permitam suprimir a distância necessária à verbalização dos sentidos. Sinto construir o meu eu progressivamente, pelas experiências que recolho de diferentes índoles e vou adicionando terra ao meu país, conquistada a ferros ao mar. Naquelas salas labirínticas pisei solo que sabia existir, mas que até agora estava submerso por água. A insegurança de pisar algo virgem e aparentemente instável, depressa é arrebatada pela ânsia de assimilar tudo, construir diques, erguer muralhas para que o que é meu, já mais me seja tirado. Algum dia terei de parar, voltar-me e cultivar as terras férteis conquistadas, ou para que as servirá para além do culto de império. Não é ainda esse o momento e mais longe tenho de ir, para calar este desassossego que me inebria intensamente a mente.