"Morreu... Ela morreu! Mano?!" Talvez as palavras mais difíceis de dizer na minha vida. Corri, na minha mente as ideias atropelavam-se, os sentimentos ameaçavam retirar toda a energia, mas não podia parar, tinha de continuar, tinha de chegar a ti, tinha... Lá fora ouviam-se gritos histéricos, não se percebia se de alegria, ou de desespero, pois agonia e alegria vivem tão perto da nossa alma; num instante se acercam e cometem a sua tirania, tal qual vizinhas bisbilhoteiras.
Saíste do banho, não me lembrei o quão frágil estavas, queria abraçar-te e mentir-te. Passaste tanto, porque tinha eu corrido tanto, porque tinha de ser eu o portador?! "Morreu... Ela morreu!" As palavras saíram-me cuspidas da boca e entrei em choque, nem de respirar tenho memória. De toalha caída, apenas segura pela mão, olhaste-me como não consigo descrever, mas não havia ódio, não havia raiva, não havia chama, não havia nada; havia apenas um assentir que fiz o correcto. Passaste por mim, quis novamente abraçar-te mas... Vestiste algo, saíste para o barulho da vizinha que já sabias não ser a vizinha menos má. A tua mãe abraçou-te, a mãe dela abraçou-te, beijaste ambas, eu olhava...
Eu olhava, tu estavas na cama, não falavas, não tinhas fome, não tinhas sede, não sei para onde olhavas. Tinha medo mas ainda assim aproximava-me só para ter a certeza que respiravas. Foste ao funeral. Seguraste o rosto dela com ambas as mãos, tomaste o teu tempo, beijaste-a e tomaste o teu lugar na fila dos murmúrios. De todos aceitaste as condolências, nunca choraste. Duas semanas ficaste na cama, não falavas... Eu gritava: "morreu... Ela morreu!" Agora ouvias e eu não falava. Não abracei mas quis tanto.
Foi minha a tua raiva, a tua cólera, a tua indignação, o teu ultraje. Repugnei Deus, porque teria ele feito isso. Porque te fazia sofrer tanto. Só a salvou quando te quis matar, para poder castigar mais tarde. Não devias ter sobrevivido, não podias, ninguém sobrevive, enganaste-o, ele não poderia deixar passar imune. Passaste tanto e nem por uma vez te ouvi dizer, afasta de mim este cálice. Bravamente lutaste.
Vi-te ligado a máquinas, desejei que elas se calassem para que te pudesse ouvir, mas apercebia-me que se elas parassem morrias. Via-te ali deitado e ouvia os médicos dizerem que tínhamos de estar preparados e a cólera, a raiva cresciam. Eu também não chorava, não te queria envergonhar. Venceste, apeteceu-me perguntar se estavas orgulhoso de mim, não o fiz...
Ela esteve sempre lá meu irmão, em todos os momentos te segurando a mão, te arranjando o cabelo, te dando comida. Tanto carinho no olhar dela, tanta devoção, tanto amor... "Morreu... Ela morreu!" Deus não te castigou, eu sei que não te castigou, quero pensar que não, quero pensar que a foice falhou o centeio na primeira passagem, mas teria de passar na segunda. Penso que a pessoa que te amava, que te segurou a mão, penso que ela, eu quero pensar, eu quero acreditar... Penso que ela trocou de lugar contigo quando a foice passou, para que as máquinas se calassem e eu te ouvisse finalmente.
Dois meses passaram, tinhas chegado do hospital, onde estiveste quase quatro meses. Parecias recompor-te. Ouvia gritos, corria, corria. A tua mãe, a nossa mãe gritava, tu não falavas, tu não comias, tu não bebias, não precisei de me aproximar para saber que não respiravas. Mas a foice já tinha levado o centeio... Conclui a corrida, segurei-te nos braços, fiz tudo o que aprendera. Não sei quanto tempo levou, mas ambulância tinha chegado, podia deixar-te já respiravas. Desculpa, não consegui ser mais forte, chorei, vomitei, fui fraco.
As máquinas, novamente as máquinas. Tinham-te de operar novamente. Oito horas, abriram-te a cabeça, o nariz, os olhos, os teus lábios, todos se juntaram ao teu pescoço. Arranjaram-te, arranjaram o que podiam. Tiraram cabelos e vidros da tua cabeça, não devias estar vivo, ninguém sobrevive aquilo. "Lamentamos". O meu irmão não pode morrer ele não vai, por favor não vás. Fugi dali, berrei gritei, chamei-O filho da puta. Não morreste.
Foram mais meses de recuperação, foi a miquinhas que também partiu para resolver as coisas do outro lado de cara a cara com quem decide estas merdas, foi o nosso maninho que também se aproximou da foice. Não te vi chorar, não te tenho na mente a chorar. Perdeste visão, audição olfacto, mudaste a personalidade...
Quantas vezes estou sentado a teu lado e penso como será que tu consegues, e grito na minha alma: "Morreu... Ela morreu!..." E porque não te abraço?
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