quinta-feira, 31 de julho de 2014

Dançar nas nuvens

"Se te aproximares eu salto!" Assim parece ela dizer, num simples retrato encaixotado na moldura de uma janela, tendo por cenário um céu pincelado a cores de nuvens.

Gingar de anca, abraçado no encarnado do que está por despir. Roupas não têm lugar na dança das nuvens.
 
Pé ante pé, uma mão segurando o abismo, a outra balbuciando convite para aproximar. Desafio, ou ameaça? Aproximar, ou seguir sentido oposto?
 
Encantamento do olhar, focado num rosto que se resguarda, onde o cabelo reforça a forma do mistério.
 
"Tens de largar a mão!" Eis o que anseia ouvir, quando o tempo sente, o espaço deseja e a solidão se apodera. Solidão, essa forma monstruosa da miséria humana.
 
Não é de solidão que se trata, não aquela que se define pelo oposto à presença próxima de alguém ou algo. Serenidade rítmica, apelativa ao olhar num salto de fé, onde o abismo é vencido pela força magnetizante do horizonte, oferecido pela mais pura das danças.
 
Bailarina que fazes dançar, ninfa dos tempos modernos... já és vista, já és sentida; os sentidos despertam, a mão é agora agarrada, a outra liberta-se para fechar a janela.
 
Que a dança se inicie, com a sofreguidão da primeira golfada de respiração após um longo coma. Nas nuvens se sentem - nas núvens- pois no solo não há essa possibilidade!
 
Na janela que tudo mostra, apenas tu és vista!


In Letras do Olhar em 25/04/2014

domingo, 20 de julho de 2014

Distâncias perpétuas

Duas árvores e um banco, uma distância e dois seres vivos.
Imóveis, estáticos, cheios de vida, com desejo de florescer numa altivez de clorofila.
Distância guardada por um objeto antrogênico, com resquícios de materialidades, ora vivas que o foram apenas em memórias de experiências passadas.
Porém braços tocam-se, embalando as folhas com a suavidade, desculpa da brisa que sussurra cumplicidades partilhadas. O banco esse trás o conforto, não sem distanciar na vergonha da preguiça de passados defuntos.
A distância é o convite à pausa, ao conforto, à contemplação. Para lá da colina ergue-se uma superfície de oportunidades, cujos braços tão juntos que as mãos se dão, conseguem antever um movimento de perpétua inércia. Não se movem mas poderiam-o fazer; ramos que são braços, braços que são asas, e o prado verde transforma-se num céu azul prestes a ser rasgado pela energia inebriante de dois seres vivos ora árvore, ora distantes.
A primavera e a vitalidade, folhas e mais folhas. Desvanece-se a distância, desaparece o banco entre toque de braços que se funde num abraço. Não há conforto, não tem de o haver, mas o banco, a distância, essa persiste e está presente.
Os outros momentos sazonais são amenos em termos de proximidades. Os outros, pois falta mencionar inverno. Parte o fulgor, esvai-se a energia, sucumbe a cor, prevalecendo apenas a forma do banco. Materialização de distâncias.
Asas, braços, ramos, ser vivo... Dois uno, simplesmente regredindo em dois indivíduos. Brisa é substituída por feroz vendo que suga os últimos resquícios de energia em forma de folhas de tons envelhecidos, provocando agressivos estocadas entre ramos.
Só o banco não muda, apenas a distância não se altera. Ciclos intermináveis, que não cessam à escala temporal de duas existências. Traço de escrita cinzento, pois os seres vivos retratados não só terão braços no lugar de ramos, como pernas no lugar de raízes num antropomorfismo ímpar.
Porque terá o "jardineiro" as plantado tão longe e porquê o banco?

In Letras do Olhar 22/04/2014

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Despertar do olhar

Momento que desconhece fronteiras físicas ou temporais. Reveste-se de significados que se perdem até onde a raça humana se atreveu a povoar, numa escala de tempo apenas mensurável na tradição oral.

Fusão de significados, de sentidos, de uniões indisfarçavelmente absurdas. Luz e penumbra, início e fim, noite e dia, apenas a parte do tudo que é representado, cativando para além da compreensão.

Sem lágrimas, sem risos, sem palavras, sem gestos... Imobilidades físicas, abraçando um momento solene de indiscutível profundidade.

O dia morreu, a noite nasce. Fecha os olhos a luz, arrefece o calor, o nosso corpo acompanha estes estímulos que nos circundam, abrandando e entregando-nos a uma sonolência que se apodera de nós. Sentimos chegar uma morte sem luta, sentimos aproximar-se o desejo de recolhermos e dormirmos. Mais um fim, mais uma morte, a morte do dia, o sono, o adiar da vida numa pausa obrigatória.

Observar o por do sol é um ato de solidão, um ato de egoísmo. Sentirá o pescador ser apenas dele este momento, quando se julga só? Milhões destes momentos, multiplicados por todos os locais, porque não possuir este, negando mesmo a quem o captura pela lente? A sua dimensão dissolve-se tal qual a sua silhueta perante a incapacidade de focar; jaula alguma pode conter este momento, pelo que o que vem e vai independentemente da vontade e do desejo, alguma vez pode ser propriedade de alguém.

A cor que explode como gastando as últimas réstias de energia, antes da lâmpada se fundir e a escuridão tomar o seu lugar devido. O Sol desaparece com fulgor para regressar timidamente, enquanto que a Lua goza de mais maturidade e aguarda pacientemente a sua vez de chegar e partir. Não há nascer, ou por da Lua, não há, ela apenas existe.

Outras histórias, outros fulgores, dispersares de ideias e sentimentos. Arrebatamentos, memórias, sensações que perduram e estimulam. Entre recordações e estímulos, sejamos exacerbados pelo poder paralisante do por de sol mais marcante que tenhamos presenciado, finalizando momentos que têm de terminar, com a promessa de um novo começo nos encha de uma nova esperança.

Assim se julgue o pescador seu proprietário, despertando pela penumbra!

In Letras do Olhar 20/04/2014

domingo, 6 de julho de 2014

Desencontro

Como podem Sol e Lua apaixonarem-se? Como pode amor acontecer se os dois não se juntam? O Sol sempre procurando e mesmo sabendo onde ela está, chegando não a encontra. Será que se esconde?

Terá de ser a Lua, só ela o pode encontrar! Tímida e apaga, por vezes se faz notar, mas o Sol não a reconheço pois não é ela.

Fácil fechar olhos e desejar, sentir ainda que apenas com palavras. O sentir que se descreve mas que não toma a dimensão para além dos traços desenhados pela linguagem humana, quando tudo surgiu antes.

O Sol nasceu para ser cometa e não estrela. Deslocar-se em tempos e em espaços diferentes, e não desta forma...

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Escalar o Mundo

Pedra ante pedra se ergue o pedestal. Pedestal este destituído da cor, abraçado pelo cinzento, buscando o beijo do azul.

O mundo aos pés, escalado pela força dos braços. A mente essa, perscruta o horizonte, olhar descaído no receio das alturas e a respiração ofegante beijando o ar que penetra as narinas, sufocando o pânico que ameaça apoderar-se.
 
O poder da grandeza rapidamente sucumbe ao desespero avassalador da solidão. Solidão essa que abraça por todos os lados, sem mostrar rosto, sem aquecer com o toque, mas sussurrando ao ouvido o silêncio que gela a mente e estremece o âmago mais íntimo.
 
A escalada iludiu com a sobranceria sobre o mundo abaixo prostrado. O mundo deixa-se escalar apenas para mostrar o devido lugar das coisas. Ele lá em cima entende agora o seu lugar e vendo-se não mais que uma coisa, pé ante pé, precipita-se no salto que lhe trará o fim da solidão.
 
Ao menos os pés não fossem pedras...

 
In Letras do Olhar 21/03/2014