domingo, 20 de abril de 2014

Voz silenciosa

Por uma vez, por pouco tempo, hoje... Bom, tão bom, é bom não ouvir a nossa própria voz. Escutar apenas o silêncio dos pensamentos e o ritmo embalador dos sentimentos.
 
Falar é expor, falar é abrir uma brecha impossível de tapar para o nosso real Eu. Possam ser os olhos janelas, mas janelas inacessíveis. A boca, a comunicação verbal é a porta, porta essa escancarada. Pronunciam-se palavras incautas e exposto surge o nosso âmago. Calado tudo é dito, nada é escutado; calado os olhos olham apenas para o interior e buscam nos pequenos estímulos que persistem no silêncio, indícios de descoberta.
 
As palavras tomam energia, consomem-na. Questionável a sua eficiência, energia desperdiçada. Todos aqueles angustiantes momentos que antecedem uma necessidade asfixiante de explicar, de nos fazermos entender, de demonstrar, de conquistar, de arrebatar e nada, nada acontece, as palavras nada trazem. Desperdício de energia que nos reduz à vulgaridade dos números, um entre tantos, palavras, números, coisas nenhumas, crónicas do nada. Tudo acontece dentro, em nós, em mim, pois tu não cabes cá dentro.
 
Ninguém cabe cá dentro, ninguém! Sinto-me tão apertado, tão preso, tão amarrado. Não sei onde pertencer e prefiro encolher-me a rasgar esta membrana claustrofóbica que me envolve, por isso me calo.
 
No silêncio ouço novamente uma voz, a minha voz. No espelho um homem adulto despido. A barba, os ombros, a barriga, o rabo, o pénis. Tudo tão estranho. Abro as mãos simultaneamente, sentido o ar entre dedos, agitando-as suavemente. Desvio o olhar para uma e depois para outra. Deixo-as silenciosamente tocar cada parte do homem adulto, sem que o reconheçam.
 
Do silêncio, uma voz dentro de mim irrompe questionando, mas quem és tu, quem és? É a minha voz, mas não sou eu, contudo que sei eu?!

domingo, 6 de abril de 2014

Compro amor

Sim compro-o, compro o de menor calibre, aquele de letra minúscula, não sobrem confusões, sucumbam as dúvidas, pelo menos estas. Melhor quero-o comprar, mas não sei como, não sei onde, não sei a quem, não sei quando. Nada sei para além que o quero e isso já não é notícia, pois para além do quê, não tem quando, como, a quem, não tem mesmo nada.
 
O amor, compro-o. Sei bem o que quero, sinto-o, anseio por ele, sufoca-me só imaginar. Só, não pela solidão, só tal qual o ar que faz arder os pulmões na ausência. Incendeia-se em mim a sua ausência, esse amor menor.
 
Menor, mais pequeno, ou o único, que sei eu afinal?! Qual afinal? Um tempo, um espaço, uma intenção, imensa partilha, ausência de dor. É esse...
 
As coisas simples; a mão que afaga o cabelo; o bater do coração daquele que nos segura maternalmente nos braços; os lábios ternos, húmidos e quentes que deliciam os meus, numa dança de dois amantes embrenhados em sincronias irrefletidas; o cheiro após o beijo da minha boca, qual flores perfumadas pela chuva calma e abençoada; as palavras que são só isso mesmo, palavras que convidam, palavras que embalam, palavras que fazem sonhar, palavras que dizem mais que o silêncio e nunca menos.
 
E, não é tudo. Quero o sexo, quero-o porque o animal encerrado dentro de mim estripa-me, dilacera-me com as suas garras. Quero, quero mesmo, compro o que quero, compro-o, a ele ao amor, ao sexo...
 
No fim, não posso sofrer, não há desmoronamento de emoções, não há dor infligida, não há dor sofrida. Sem sentimento de perda, sem perda de sentido, sem saudade. Com significado, com intensidade, com partilha, com tudo, mas tudo num tempo, num espaço, num sentido...
 
Paro um pouco, penso no caminho que me trouxe a esta linha. Sinto, tomo consciência, absorvo esta inquietação, traduzo-a minimamente. Vejo dúvidas, vejo confusões... Será que compro, ou será que vendo? O Amor, ou o amor? Não sei, simplesmente não sei, mas quero, quero mesmo muito!

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Coisa

Coisa que palavra essa...

Não significa nada e encerra o significado de tudo.

Tudo são coisas e as coisas não são nada.

Se não sabes o que é, coisa será. mas o que é uma coisa? Será coisa?

Realmente é alguma coisa.

Livro Emprestado

Abro-o com o fascínio habitual, perante promessas de me permitir sentir, de lentamente me entregar, de deixar o refúgio para viajar, num espaço e tempo de fantasia imaterial.
 
Página sobre página, busco a confiança, que autoriza a mente a introduz-se na história. Olha para as letras e vejo cores, formas. Olho para as letras e cheiro as personagens, cheiro-as no medo, na alegria, em todos os estados com que vivem encerradas na história na qual me encontro agora. Só de as olhar, a elas as letras, ouço tudo, ouço o silêncio, ouço o ruído. As letras, novamente elas, só de as ler sinto na pele o toque, sendo como que cada milímetro da minha superfície esteja emerso em sensações. O que as letras não me dão é uma voz, essa roubo-a...
 
Já enredado, no feitiço que sobre ameaça dos olhos que se encerram, me faz continuar página atrás de página, como que receando qual película de cinema, o realizador corte a cena e os autores sigam o seu rumo.
 
Eis que me surge um livro dentro do próprio livro. Este sem letras, mas desafiando ainda mais os sentidos. Pistas desgarradas de sentido, peças de puzzle que se prostram perante mim desafiando-me a que as encaixe.
 
Recibo de produtos cosméticos, senhas numeradas de atendimento e acima de tudo areia. Tudo isto, muito pouco, o suficiente... Empreendo uma viagem que me fascina, me esgota, me seduz, me vicia. Datas, locais, qualquer dica, qualquer pista, tudo busco.
 
Encerro finalmente uma janela temporal, janeiro a agosto de 2011. O mais simples está feito, mas não se constrói um puzzle apenas com as peças do canto, não se escreve um livro onde faltem personagens, um local para que essas existam.
 
Tenho-te a ti, és a minha personagem. "Serviços de transporte", "devoluções, D ou B, "obrigado pela visita - volte sempre". Mas mais importante a areia, cada grão como que alojado entre as páginas do livro que encerra as pistas, como milestones na viagem que o meu espírito empreendeu.
 
Insistentemente me tens desafiado. Timidamente aproximo-me escutando esse desafio de forma aparentemente desinteressada e casual, quando dentro de mim explode uma ânsia de expressão. Será este o estímulo? Foi propositado?
 
Com elas, com as pistas consegui toda a matéria prima. Tu a personagem, eu o realizador. O livro dentro do livro, o filme feito livro. Filme porque vejo o movimento fluir ante os meus olhos, olhos esses que observam a mente. Ainda não livro pois não estão vendados os olhos, quando só aí, apenas nesse momento serei capaz de capturar todos os movimentos transformando-os em palavras. Palavras essas que tragam expressão aos sentidos e voz a quem quer ser ouvido.
 
É muito, é demais. Fervilham os dedos como procurando obedecer aos sentidos, a todos os sentidos, mas os olhos pedem só mais um pouco. Esse pouco esgota o tempo, a timidez apodera-se de mim, a ânsia sossega e eu, eu procuro voz antes de conseguir dar voz...
 
Mas está tudo ali, vejo-te mas não te consigo cheirar, não te ouço, não te toco. Tens um tempo, um lugar, uma existência. É esse o apego, a posse de não fechar os olhos para dar voz.
 
E tudo num livro emprestado...